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A Cidade é Nossa

Polêmica da Vila Leopoldina ultrapassa fronteiras do bairro

Raquel Rolnik

12/06/2018 08h41

Uma polêmica envolvendo moradores, empreendedores e organizações sociais que atuam na Vila Leopoldina tem ultrapassado as fronteiras do bairro e ganhado as páginas dos jornais, campanhas e abaixo assinados.

Trata-se de um Projeto de Intervenção Urbanística (PIU) apresentada pelo Grupo Votorantim, em associação ao SDI, seu braço de desenvolvimento imobiliário, e URBEM, escritório de consultoria de projetos urbanísticos voltado à implementação de parcerias público-privadas, a ser implantado na região, envolvendo, mas não se restringindo, a terrenos de propriedade do Grupo.

Projetos de Intervenção Urbanística promovem mudança no zoneamento e/ou outras regras urbanísticas na cidade, em troca de contrapartidas de interesse público. No caso do Grupo Votorantim para a Vila Leopoldina, a proposta inclui a remoção de duas favelas vizinhas à área da Votorantim para uma área próxima, de propriedade da SPTrans, aonde seriam construídas moradias para as famílias removidas.

Moradores de condomínios do entorno rejeitam a proposta, apresentando argumentos que passam da possível contaminação do terreno até a inadequação da presença de moradia popular em um bairro de alta renda. Não é a primeira vez que se posicionam dessa forma: desde o debate do Plano Diretor de 2014, houve grande mobilização nesta mesma região contra o estabelecimento de Zonas Especiais de Interesse Social (ZEIS), destinadas para construção de habitações populares. Aparentemente, trata-se de um caso clássico denominado pelos norte-americanos como NIMBY (not in my backyard, ou "não no meu quintal"), quando proprietários de imóveis das redondezas se organizam para impedir a instalação de usos que potencialmente os desvalorizarão.

Do outro lado, em defesa do projeto, além dos proponentes do PIU, estão a prefeitura, os moradores das favelas da área e moradores e membros de organizações sociais filantrópicas que atuam na região, acreditando ser esta uma oportunidade para enfrentar a situação precária de moradia nas favelas e conjunto Cingapura da região.

Esta é uma discussão extremamente relevante para uma cidade altamente segregada como São Paulo. A luta por uma cidade mais integrada e justa, e pela implementação das ZEIS vem de longa data e é no mínimo triste uma politica urbana de tanta relevância, como a promoção de moradias populares nas ZEIS ainda ser objeto de contestação. AS ZEIS estão demarcadas na cidade para acolher habitação popular; qualquer outra destinação é um desvio grave e uma irregularidade. Entretanto é também importante entender outras camadas e complexidades presentes no caso da Vila Leopoldina.

Em primeiro lugar, a proposta de construção destas aproximadamente 500 moradias, acrescidas de mais 250 habitações na área institucional do perímetro do PIU e a reabilitação de um conjunto Cingapura construído na área nos anos 1990, faz parte do pacote de "contrapartidas" que os empreendedores oferecerão em troca de ter o potencial de construção em seus terrenos dobrado – de duas para quatro vezes a área do terreno – além de, evidentemente, ter eliminado a presença precária das favelas do Nove e da Linha de suas vizinhancas, o que além de valorizar o terreno, viabiliza o projeto pois estas ocupam áreas que seriam ruas. Troca justa? Não há dúvida que ganhar moradias sociais é extremamente positivo para a cidade , mas… aonde estão estas contas? E principalmente, aonde está a prefeitura que abdicando de seu dever de conduzir e implementar as ZEIS espera passivamente que alguma proposta conveniente de parceria público privada o faça?

Quantos são os moradores das favelas da Vila Leopoldina? Qual é seu perfil? Quais são as formas de acesso à moradia adequadas para a diversidade de situações presentes ali? A proposta parte apenas de um número, 776 famílias, baseada em um levantamento feito pelo Instituto Acaia em 2016. Construir estas moradias é muito? É pouco? Não há cadastro dessas famílias – obrigação da prefeitura, não há conselho gestor das ZEIS das favelas, outra obrigação não cumprida e portanto não há debate sobre suas necessidades de moradia. Quais são os termos destas trocas? Quanto custa e quem pagará pelas moradias, já que os terrenos aonde elas serão construídas são públicos? E quanto ganha o empreendedor com a duplicação do potencial de exploração dos terrenos?

A palavra "moradia social " não pode ser uma espécie de chave mágica para poder aprovar projetos e planos urbanísticos, como ocorre em São Paulo desde os anos 1980 quando as operações interligadas introduziram este tipo de troca. Defendemos que os moradores das favelas e do conjunto Cingapura, assim como os moradores de rua que vivem na região , tenham um atendimento adequado na área. E que é justo e correto que qualquer projeto para a região inclua esta demanda, como é o caso deste PIU. Mas ainda é necessário avançar no desenvolvimento e no debate público sobre esta proposta, a partir de uma definição clara das formas e estratégias de tratamento das precariedades da área. O PIU da Vila Leopoldina é um dos 34 projetos deste tipo que estão em discussão na cidade de São Paulo. Os interesses públicos envolvidos nestes projetos, que alteram as regras urbanísticas da cidade, carecem de um debate que vá além da polêmica "habitações sociais: sim ou não"…

Sobre a autora

Raquel Rolnik é arquiteta e urbanista, é professora titular da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP. Foi diretora de planejamento da Secretaria Municipal de Planejamento de São Paulo(1989-92), Secretária Nacional de Programas Urbanos do Ministério das Cidades (2003-07) entre outras atividades ligadas ao setor público. De 2008 a 2014 foi relatora especial da ONU para o Direito à Moradia Adequada. Atuou como colunista de urbanismo da Rádio CBN-SP, Band News FM e Rádio Nacional, e do jornal Folha de S.Paulo, mantendo hoje coluna na Rádio USP e em sua página Raquel Rolnik. É autora, entre outros, de “A cidade e a lei: legislação, política urbana e territórios na cidade de São Paulo” (Studio Nobel, 1997), “Guerra dos lugares: a colonização da terra e da moradia na era das finanças (Boitempo, 2016) e “Territórios em Conflito - São Paulo: espaço, história e política” (Editora três estrelas, 2017).