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A Cidade é Nossa

Copa do Mundo na Rússia: das violações que não se comentam

Raquel Rolnik

18/06/2018 11h02

Assim como outros países que já sediaram a Copa do Mundo de Futebol da FIFA e os Jogos Olímpicos, a Rússia vive um frenesi midiático. Para além das seleções, craques e técnicos que disputam o torneio, fala-se como nunca do país e de suas cidades, dos estádios e infraestruturas existentes ou construídos especialmente para sediar o megaevento esportivo.

Mas não se fala dos custos humanos e violações que ocorreram durante o processo de preparação das cidades para as competições. Para a construção de estradas, vias elevadas e novos estádios, muitas famílias perderam suas casas sem compensação adequada, num evidente desrespeito aos preceitos do direito à moradia, tal como estão estabelecidos nos marcos legais internacionais dos quais a Rússia é signatária.

Assim como ocorreu no Brasil e na África do Sul, estas violações estão relacionadas a disputas em torno da titularidade da terra e dos direitos de seus ocupantes. Embora em escala bem menor – estamos falando de dezenas de casos na Rússia e de milhares no Brasil e na África do Sul –, as desapropriações sem compensação adequada foram todas de moradores que, embora habitassem há décadas o local que ocupavam, não tinham suas casas registradas em uma instituição reconhecida pelo governo.

Muitas famílias que viviam em fazendas coletivas no período da União Soviética continuaram habitando – e ampliando – suas casas quando o regime comunista se desintegrou e, com o tempo, tais moradias acabaram sendo incorporadas às cidades em expansão. Este é o caso, por exemplo, das famílias da região de Adler, em Sochi, que perderam suas casas para a construção da Olympics Road, quando a cidade recebeu as Olimpíadas de Inverno em 2014. Assim como ocorreu durante os megaeventos no Brasil, exigências legais foram suprimidas em nome do cumprimento de prazos de inauguração, o que comprometeu o direito de defesa das pessoas que foram impactadas pelas obras.

Outro caso ocorrido na Rússia neste contexto foi o dos estudantes moradores de residências universitárias que, muitas vezes sem ter outra opção de habitação, tiveram que deixar seus apartamentos para que estes fossem ocupados pela Guarda Nacional e pelos militares encarregados dos jogos. Para viabilizar esta desocupação, o Ministério da Educação reduziu em um mês o calendário letivo, sem considerar, porém, que muitos trabalham na mesma cidade onde estudam. Em São Petesburgo, parte das poucas moradias sociais de aluguel que ainda pertence ao State Housing Fund também foi esvaziada com o mesmo propósito, diminuindo a oferta de moradia de aluguel barata em um contexto de mercado imobiliário inflacionado.

Além das violações relacionadas à moradia, muitas foram também as denúncias de uso de trabalho análogo ao regime de escravidão na construção de estádios e infraestruturas, envolvendo milhares de trabalhadores, principalmente imigrantes. Esta mesma denúncia tem sido feita ao Qatar, que está conduzindo uma série de empreendimentos para receber os Jogos Olímpicos no ano de 2022.

O fato é que estes grandes jogos, capazes de encantar multidões no planeta e vender bilhões de produtos, não são capazes de implantar de fato uma conduta fair play para além dos campos de futebol, quadras, ginásios. Ou seja, um jogo 100% ético, aonde ninguém tenha seus direitos violados em nome dos espetáculos.

Sobre a autora

Raquel Rolnik é arquiteta e urbanista, é professora titular da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP. Foi diretora de planejamento da Secretaria Municipal de Planejamento de São Paulo(1989-92), Secretária Nacional de Programas Urbanos do Ministério das Cidades (2003-07) entre outras atividades ligadas ao setor público. De 2008 a 2014 foi relatora especial da ONU para o Direito à Moradia Adequada. Atuou como colunista de urbanismo da Rádio CBN-SP, Band News FM e Rádio Nacional, e do jornal Folha de S.Paulo, mantendo hoje coluna na Rádio USP e em sua página Raquel Rolnik. É autora, entre outros, de “A cidade e a lei: legislação, política urbana e territórios na cidade de São Paulo” (Studio Nobel, 1997), “Guerra dos lugares: a colonização da terra e da moradia na era das finanças (Boitempo, 2016) e “Territórios em Conflito - São Paulo: espaço, história e política” (Editora três estrelas, 2017).