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A Cidade é Nossa

Mais um incêndio e as soluções fáceis que não existem

Raquel Rolnik

06/09/2018 09h28

O incêndio recente que atingiu grande parte do acervo do Museu Nacional, no Rio de Janeiro, levanta, para além da questão do desprezo da nossa cultura pela memória, o tema da gestão dos espaços e equipamentos públicos.

Qualquer espaço construído necessita de manutenção, incluindo também pequenas reformas, permanentemente. Sabemos isso através da experiência em nossas casas: uma telha que quebra, se não for trocada imediatamente pode gerar infiltrações . Um cano que estoura ou entope, um vidro que quebra: precisam ser consertados. Às vezes reformas mais drásticas são necessárias para manter o desempenho e a segurança do edifício, como quando o velho aquecedor de gás precisa sair do banheiro e, de acordo com as novas normas, ser reinstalado fora da casa. Não consertar, trocar, manter – como sabemos – vai implicar, além de uma aparência de abandono e descuido, uma deterioração física que pode se transformar em risco . Esta constatação óbvia e presente na vida cotidiana de todos enfrenta por incrível que pareça enormes dificuldades para poder se viabilizar quando se trata de espaços públicos. E assim povoam nosso cotidiano as cenas de escolas, praças, museus deteriorados.

As dificuldades de manutenção permanente dos equipamentos públicos são basicamente de duas ordens. Em primeiro lugar, obras de manutenção, silenciosas e invisíveis, são muito pouco atraentes do ponto de vista político, gerando pouco "recall" eleitoral – e, portanto, são pouco ou nada priorizadas.

Um exemplo eloquente do que acabo de dizer são os critérios e forma de distribuição dos recursos públicos, especialmente quando escassos: é possível obter investimentos para construção novas (ou mesmo para reformas espetaculares), que são inauguradas com faixas e placas que agradecem os políticos ou empresários que conseguiram o dinheiro. Me lembro inclusive de um prefeito que numerava as placas de metal postadas nos equipamentos que inaugurava em sua gestão. Mas para as pequenas obras e ações de manutenção de todo dia, sem fitinha para cortar , é muito mais difícil.

Porém a existência – ou não – de recursos para manutenção está longe de ser o único obstáculo. O mais sério , a meu ver, é o quanto, como resposta simplista aos perigos da corrupção, literalmente se impossibilita a ação do setor público. Comprar um vidro para trocar ou fios elétricos para uma nova instalação se transforma cada vez mais em um pesadelo: licitações obrigatórias exigem o menor preço (e não raro se gasta dinheiro em fita crepe que não cola, por exemplo) e um rito demorado e complexo é o cotidiano dos gestores de espaços públicos. Aterrorizados pelas pressões dos órgãos de controle, os servidores são acuados e se obrigam a percorrer não o caminho mais ágil, e sim o mais seguro do ponto de vista jurídico, que geralmente é também o mais lento.

Neste contexto, falar em "negligência" dos gestores é , no mínimo, simplista. É como temos visto diante das demais crises de nosso modelo de Estado e política, uma espécie de "algoz' que se apresenta para os cidadãos revoltados com as tragédias, para acalmar sua ira e, na verdade, obscurecer as tramas que estão por trás dela. Para, desta forma, mantê-las exatamente como são.

É também neste registro ocultador que funciona a opção "privatização" de todos os equipamentos como alternativa às dificuldades – reais – de gestão que temos da coisa pública. Ao contrário dos que advogam por esta solução, "privatizar" não necessariamente melhora as condições de combate à corrupção, na medida em que amplia as possibilidades de apropriação privada de recursos públicos e, em geral, diminui os espaços de controle social. Por outro lado, a equação da rentabilidade econômica – fundamental para que a manutenção dos serviços e equipamentos públicos seja um  bom negócio – pode comprometer suas  próprias atividades-fim. Trocando em miúdos: para um museu ser rentável precisa se transformar  em shopping center.

Qual é a solução, portanto? É exatamente este debate, difícil, complexo e espinhoso e sem saídas fáceis, que precisamos encarar neste momento.

Sobre a autora

Raquel Rolnik é arquiteta e urbanista, é professora titular da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP. Foi diretora de planejamento da Secretaria Municipal de Planejamento de São Paulo(1989-92), Secretária Nacional de Programas Urbanos do Ministério das Cidades (2003-07) entre outras atividades ligadas ao setor público. De 2008 a 2014 foi relatora especial da ONU para o Direito à Moradia Adequada. Atuou como colunista de urbanismo da Rádio CBN-SP, Band News FM e Rádio Nacional, e do jornal Folha de S.Paulo, mantendo hoje coluna na Rádio USP e em sua página Raquel Rolnik. É autora, entre outros, de “A cidade e a lei: legislação, política urbana e territórios na cidade de São Paulo” (Studio Nobel, 1997), “Guerra dos lugares: a colonização da terra e da moradia na era das finanças (Boitempo, 2016) e “Territórios em Conflito - São Paulo: espaço, história e política” (Editora três estrelas, 2017).