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A Cidade é Nossa

Paralisação dos caminheiros escancara os limites da opção rodoviarista

Raquel Rolnik

28/05/2018 09h45

Desde que eclodiu a paralisação de caminhoneiros, os veículos de mídia do país foram tomados por um intenso debate em torno de temas como a política de preços da Petrobras, a dependência em relação à importação do diesel em dólar, a política de concessão de pedágios, entre outros. Quero aqui, entretanto, me ater a um aspecto que, embora tenha também aparecido no debate, me parece ainda pouco explorado.

Se há três semanas o incêndio e desmoronamento de um edifício no centro de São Paulo ocupado por famílias sem teto escancarou a crise da moradia, a paralisação dos caminhoneiros e suas consequências sobre o funcionamento das cidades expôs, de forma contundente, os limites da opção rodoviarista e dependente de combustíveis fósseis de todo nosso sistema de abastecimento e circulação. Sem gasolina e diesel nos motores, não andam os ônibus nem se recolhe o lixo; sem caminhões, não chegam alimentos às gôndolas dos supermercados e às centrais de abastecimento.

Transformado em matriz hegemônica desde que o transporte sobre trilhos deixou de ser um negócio rentável para as empresas que implantaram a estrutura ferroviária e de bondes urbanos em finais do século XIX e início dos anos 1920, o transporte sobre pneus movido a derivados do petróleo se anunciava, no início dos anos 1940, como possibilidade de libertação dos rígidos traçados das vias e trilhos, abrindo frentes de ocupação do território cada vez mais vastas. Para que pudesse ser implantado, grandes investimentos, não apenas na abertura de rodovias, mas também nas indústrias automobilística e petroquímica, foram priorizados, constituindo uma das bases mais importantes da política industrial do país, vigente até os dias de hoje.

Em São Paulo, foi nos anos 1930 que a Câmara Municipal decidiu não prosseguir com a expansão dos trilhos de bonde, optando por investir em um modelo de circulação no qual as classes médias pudessem se locomover amplamente com seus automóveis e a maioria da população passasse a ser transportada por ônibus. Esta opção, possibilitou, por sua vez, um modelo de ocupação "periférico", a abertura de loteamentos praticamente sem nenhuma urbanidade para abrigar a moradia popular na cidade. É em função deste modelo que, até hoje, milhões de pessoas são submetidas cotidianamente a viagens incômodas e caras, que duram horas, em trajetos pendulares. Esta mesma lógica destrói permanentemente a possibilidade de subsistência de um cinturão verde na cidade, obrigando-nos a consumir alimentos que percorrem enormes distâncias. E, assim, os interesses de empresários de ônibus, loteadores e empreiteiros que constroem estradas, pontes e viadutos passaram a ganhar enorme centralidade nos processos decisórios sobre a cidade.

É importante notar que a opção rodoviarista não diz respeito apenas ao "modo de circular". Trata-se também, principalmente, de uma opção de priorização de toda a cadeia produtiva e política do rodoviarismo: dos segmentos organizados em torno da exploração da matriz energética petróleo à indústria automobilística, dos serviços de transporte e logística aos empreiteiros envolvidos na montagem das infraestruturas para seu funcionamento.

Não precisa haver greve de caminhoneiros para sentirmos nas cidades os limites desta opção. Sempre que estamos parados no congestionamento nos perguntamos: por que não temos muito mais metrôs e trens eficientes e baratos para nos deslocar? E isso não acontece somente dentro das cidades. A cada feriado, quando as rodovias quase se transformam em estacionamentos e os carros entopem praias e montanhas, nos perguntamos: por que não temos até hoje trens para o litoral e o interior?

A resposta certamente está no poder da coalisão que sustenta a matriz rodoviarista. Mas mesmo xingando a fila de caminhões para entrar no Porto de Santos e os buracos nas estradas, ainda apostamos em "mais do mesmo" como resposta.

Seja qual for o acordo fechado entre caminhoneiros e o governo, certamente a matriz rodoviarista será preservada. Se hoje parece que estamos assistindo a uma queda de braço entre os interesses dos capitais rentistas investidos na Petrobras e aqueles dos empresários e caminhoneiros autônomos, a decisão do governo é viabilizar a continuidade do rodoviarismo: para isso se dispõe, como sempre, a usar o fundo público (nosso dinheiro!) para pagar a conta de uma política caríssima, ultrapassada e ineficiente.

Sobre a autora

Raquel Rolnik é arquiteta e urbanista, é professora titular da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP. Foi diretora de planejamento da Secretaria Municipal de Planejamento de São Paulo(1989-92), Secretária Nacional de Programas Urbanos do Ministério das Cidades (2003-07) entre outras atividades ligadas ao setor público. De 2008 a 2014 foi relatora especial da ONU para o Direito à Moradia Adequada. Atuou como colunista de urbanismo da Rádio CBN-SP, Band News FM e Rádio Nacional, e do jornal Folha de S.Paulo, mantendo hoje coluna na Rádio USP e em sua página Raquel Rolnik. É autora, entre outros, de “A cidade e a lei: legislação, política urbana e territórios na cidade de São Paulo” (Studio Nobel, 1997), “Guerra dos lugares: a colonização da terra e da moradia na era das finanças (Boitempo, 2016) e “Territórios em Conflito - São Paulo: espaço, história e política” (Editora três estrelas, 2017).