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A Cidade é Nossa

Maio de 1968 e as lutas pelo direito à cidade

Raquel Rolnik

23/11/2018 08h55

Em 2018 completamos 50 anos das manifestações de 1968. O ano marcou lutas protagonizadas pela juventude em diferentes partes do mundo: nos Estados Unidos as manifestações contra a Guerra do Vietnã e o movimento hippie; na Tchecoslováquia contra o autoritarismo da União Soviética; no Brasil a explosão da contracultura e a eclosão da luta armada contra o regime militar; e muitos outros. Mas talvez as imagens que entraram para a história, simbolizando maio de 1968, tenham sido das ruas de Paris, na França, tomadas por uma multidão que não apenas protestava, mas também transformava os próprios muros da cidade num imenso espaço público de discussão sobre a sociedade, a política e a vida, através de grafites e cartazes.

Em maio de 1968 a cidade de Paris  não era apenas cenário, mas também o próprio objeto de protesto. Podemos associar este momento, no campo do urbanismo e estudos urbanos na França, como o momento de formulação e lançamento do conceito do "direito à cidade". Foi Henri Lefebvre, sociólogo francês que, ao lançar alguns meses antes dos eventos de maio um livro-manifesto com este título (Le Droit a la Ville), quem cunhou esta expressão/palavra de ordem.

Não por acaso, Lefebvre naquele momento era professor  da Universidade de Nanterre, um dos epicentros da revolta estudantil contra as reformas  na educação superior, que foi  o rastilho da pólvora que incendiou a revolta de 1968.  Naquele momento, ele, juntamente com outros pensadores franceses marxistas, rompia com o estruturalismo que marcava hierarquicamente o processo de interpretação da economia política capitalista, centrado no papel da produção econômica e no chão da fábrica, na direção da incorporação da vida cotidiana, e portanto da vida urbana, como espaço fundamental do exercício e da disputa do poder.

Desde seu livro A Revolução Urbana, Lefebvre lança uma teoria, que  também é uma práxis, uma metodologia de trabalho, que recusa o urbanismo como pura expressão de um  pensamento racionalista, técnico,elaborado de cima para baixo. Para ele, os embates e lutas em torno o direito à cidade são centradas na sua apropriação, apontando para  a necessidade imperiosa de um urbanismo formulado por e a serviço das vontades coletivas dos cidadãos, e formulado através de sua participação direta.

O livro de Lefebvre foi rapidamente traduzido, sua primeira edição chegou ao Brasil no ano seguinte, 1969. Em plena ditadura militar, emergia um movimento estudantil pela redemocratização do país que tomava as ruas das grandes cidades. Ao mesmo tempo eclodia um movimento contracultural, do qual o tropicalismo é uma das expressões mais importantes. Ao declarar  "é proibido proibir", ecoava na voz de Caetano Veloso, os slogans presentes nos muros de Paris. Ao contrário da França, estas duas dimensões da revolta – os movimentos de esquerda que foram se orientando na direção da luta armada e a rebeldia contracultural –  não estavam articulados. E a pauta do direito à cidade, que justamente articula estas várias dimensões, não estava presente da agenda de 1968.

Sobre a autora

Raquel Rolnik é arquiteta e urbanista, é professora titular da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP. Foi diretora de planejamento da Secretaria Municipal de Planejamento de São Paulo(1989-92), Secretária Nacional de Programas Urbanos do Ministério das Cidades (2003-07) entre outras atividades ligadas ao setor público. De 2008 a 2014 foi relatora especial da ONU para o Direito à Moradia Adequada. Atuou como colunista de urbanismo da Rádio CBN-SP, Band News FM e Rádio Nacional, e do jornal Folha de S.Paulo, mantendo hoje coluna na Rádio USP e em sua página Raquel Rolnik. É autora, entre outros, de “A cidade e a lei: legislação, política urbana e territórios na cidade de São Paulo” (Studio Nobel, 1997), “Guerra dos lugares: a colonização da terra e da moradia na era das finanças (Boitempo, 2016) e “Territórios em Conflito - São Paulo: espaço, história e política” (Editora três estrelas, 2017).