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A Cidade é Nossa

Esvaziar e revogar conselhos não contribui nada com nossa frágil democracia

Raquel Rolnik

18/04/2019 13h42


Presidente Bolsonaro e o governador Dória acabam de assinar decretos que, respectivamente, extinguem ou transformam conselhos de políticas públicas que envolvem a participação de entidades da sociedade civil. Atos unilaterais do governo, sem qualquer tipo de consulta ou debate junto à sociedade, os decretos foram justificados, nos dois casos, pela necessidade de "desburocratizar e permitir maior eficiência ao governo", atribuindo aos conselhos a responsabilidade de "travar" o desenvolvimento.

O Condephaat (Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico), assim como boa parte dos conselhos que foram extintos pelo "revogaço" presidencial, era um órgão da  sociedade para debate, de forma fundamentada, dos valores e justificativas que devem ser considerados na decisão do que vai ser preservado e do que vai ser destruído no âmbito das transformações inerentes ao tempo. Estas sempre são opções difíceis e complexas – que exigem, para além de opções de natureza político-partidária e ideológica, decisões informadas e amplamente debatidas, já que o que se destrói muitas vezes não tem volta. Portanto não se trata de priorizar esta ou aquela política, de acordo com desejos manifestos nos pleitos eleitorais sempre circunscritos aos quatro anos de seus ciclos, mas sim de questões mais amplas, com outra temporalidade.

Doria decretou esta semana não apenas a redução do número de conselheiros, de 30 para 24, o que em si não é necessariamente um problema, mas mudou completamente a natureza desta composição, ao assegurar ao governador o controle de mais de 60% das cadeiras, garantindo que a decisão será necessariamente sua. E fez isto reduzindo drasticamente a representação das universidades paulistas e ampliando seu controle sobre as indicações. Ou seja, com este decreto o Condephaat simplesmente deixa de ser um conselho da sociedade para se tornar um conselho do governador.

No caso de Bolsonaro, um mesmo decreto destituiu em torno de 35 conselhos envolvidos em políticas tão diversas como cidades, população de rua, população LGBT, indígenas, entre outros. Estes conselhos foram sendo criados a partir de mobilizações e pressões de movimentos e organizações da sociedade que, em função da enorme dificuldade histórica de sequer serem enxergadas, quanto mais ouvidas, no âmbito do processo decisório sobre as políticas públicas no país. E constituíram, juntamente com o governo, e a depender da experiência concreta de cada conselho, espaços de escuta, interlocução, negociação ou controle social da implementação das políticas que lhes afetam diretamente.

Podemos – e devemos – fazer uma avaliação séria destas experiências na sua diversidade, reconhecendo o quanto elas foram ou não contaminadas pelas próprias engrenagens do sistema político, e no quanto elas puderam influenciar de fato o processo decisório e avançar sobre o controle social, de longe o mais eficiente dos controles da coisa pública.

Entretanto, extingui-los, ou desidratá-los, vai exatamente na direção contrária do aperfeiçoamento democrático. E mais: destitui-los em nome da eficiência apenas mascara o que trava a implementação de políticas no Brasil: a  mediação político-partidária, hoje já totalmente presente nos órgãos de controle como os Tribunais de Contas e o Judiciário, em sua perversíssima relação com os interesses empresariais enquistados no Estado. É para esconder, e permitir que este modelo corra solto, sem nenhum tipo de bloqueio nem contrapeso, que a cruzada anti-participação da sociedade civil está sendo travada.

Precisamos, sim, aperfeiçoar e muito nossa frágil democracia participativa, mas este gesto vai seguramente na direção contrária.

Para saber mais:

CARTA ABERTA REPUDIO SOBRE ALTERACOES NO CONDEPHAT

 

Sobre a autora

Raquel Rolnik é arquiteta e urbanista, é professora titular da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP. Foi diretora de planejamento da Secretaria Municipal de Planejamento de São Paulo(1989-92), Secretária Nacional de Programas Urbanos do Ministério das Cidades (2003-07) entre outras atividades ligadas ao setor público. De 2008 a 2014 foi relatora especial da ONU para o Direito à Moradia Adequada. Atuou como colunista de urbanismo da Rádio CBN-SP, Band News FM e Rádio Nacional, e do jornal Folha de S.Paulo, mantendo hoje coluna na Rádio USP e em sua página Raquel Rolnik. É autora, entre outros, de “A cidade e a lei: legislação, política urbana e territórios na cidade de São Paulo” (Studio Nobel, 1997), “Guerra dos lugares: a colonização da terra e da moradia na era das finanças (Boitempo, 2016) e “Territórios em Conflito - São Paulo: espaço, história e política” (Editora três estrelas, 2017).