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A Cidade é Nossa

Mulheres contam a história dos deslocados nas telas do Brasil

Raquel Rolnik

10/05/2019 08h32

Estão em cartaz nos cinemas dois filmes produzidos por duas jovens diretoras brasileiras que abordam os impactos profundos dos deslocamentos forçados e disputas territoriais na vida e na alma das pessoas atingidas. Embora se refiram a territórios e situações muito distintas, tanto Mormaço, de Mariana Meliande, quanto Los Silencios, de Beatriz Seigner, exploram com muita sensibilidade, e com a força da ficção, as múltiplas dimensões destes deslocamentos, porque contadas da perspectiva daqueles que os vivem.

Em Mormaço, a cena é o Rio de Janeiro se preparando para sediar os Jogos Olímpicos 2016, as remoções e o movimento de resistência da comunidade da Vila do Autódromo frente a um projeto de transformação urbanística na Barra da Tijuca. Ana, a protagonista, é uma defensora pública envolvida com a comunidade, mas também ela mesma vivendo um deslocamento forçado, já que o prédio de classe média em que vive na região portuária da cidade também é alvo de um ataque imobiliário.

Los Silencios está ambientado na tríplice fronteira entre o Brasil, o Peru e Colômbia, em plena Amazônia, uma pequena comunidade vivendo sobre palafitas em uma ilha, e a personagem principal, também uma mulher, chegou ali com seus filhos, fugindo do conflito armado das FARC (Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia).

As produções têm personagens centrais femininas que estão vivendo literalmente na pele, como é o caso do filme Mormaço, os conflitos em torno da posse e destino do território. E em ambas a ficção é o ponto de partida para documentar o real, já que não se trata só de contar uma história verídica, pois os próprios atores, em sua grande maioria, são não-atores, e protagonistas que viveram e vivem estas realidades.

Os dois filmes também apontam para as formas através das quais a presença/ausência do Estado e das políticas públicas são elementos centrais da trama ficcional-real. Em Mormaço, é na violência do trator e na repressão policial sobre os moradores da Vila Autódromo que ela aparece com toda a crueza que as palavras dóceis dos políticos não consegue apagar. E no caso colombiano nos deparamos com a contradição de a personagem central se chamar Amparo, mas não ter qualquer tipo de acolhimento por parte das políticas públicas, embora esteja buscando condições de sobrevivência e também a reparação pela morte do marido, líder comunitário que foi assassinado.

Vale a pena assistir os dois filmes. Para além do contar o que se passou, eles nos ajudam a entender o que estamos vivendo hoje, no Rio de Janeiro e na floresta.

Sobre a autora

Raquel Rolnik é arquiteta e urbanista, é professora titular da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP. Foi diretora de planejamento da Secretaria Municipal de Planejamento de São Paulo(1989-92), Secretária Nacional de Programas Urbanos do Ministério das Cidades (2003-07) entre outras atividades ligadas ao setor público. De 2008 a 2014 foi relatora especial da ONU para o Direito à Moradia Adequada. Atuou como colunista de urbanismo da Rádio CBN-SP, Band News FM e Rádio Nacional, e do jornal Folha de S.Paulo, mantendo hoje coluna na Rádio USP e em sua página Raquel Rolnik. É autora, entre outros, de “A cidade e a lei: legislação, política urbana e territórios na cidade de São Paulo” (Studio Nobel, 1997), “Guerra dos lugares: a colonização da terra e da moradia na era das finanças (Boitempo, 2016) e “Territórios em Conflito - São Paulo: espaço, história e política” (Editora três estrelas, 2017).