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A Cidade é Nossa

Compartilhamento de patinetes e a gestão em tempos de big data

Raquel Rolnik

23/05/2019 14h31

Uma nova febre invadiu as cidades, desafiando as formas tradicionais de gestão dos espaços e modos de circulação: patinetes motorizados que podem ser localizados via celular e acessados através de pagamento por tempo de uso. Em São Paulo eles começaram a entrar em agosto do ano passado, e em menos de um ano já são onze empresas atuando na capital, e a maioria delas na zona oeste – região da avenida Paulista, Faria Lima, Itaim, Vila Madalena.

Por utilizarem o sistema dockless (sem estacionamento fixo)  podemos encontrá-las circulando ou ainda estacionadas pelas rua, canteiros centrais e calçadas da capital, motivos pelos quais têm emergido conflitos e controvérsias – aliás , não apenas em São Paulo, mas em dezenas de cidades nas quais estão presentes pelo mundo.

Maiores do mundo, a Bird Rides e a Lime foram as primeiras, e ainda hoje as maiores startups a atuar neste ramo. Entraram na Califórnia em 2017, com adesão tão maciça que, nas cidades de São Francisco e Los Angeles, foram proibidas até que fossem estabelecidas regras e programas piloto para sua atuação.

Com altíssimo valor no mercado, sua grande fonte de extração de renda é, mais do que o valor do aluguel que os usuários pagam, a propriedade de dados socioeconômicos e de deslocamento de seus usuários, informações estas que podem ser vendidas para todas as formas de marketing segmentado, além de outros.

O deslocamento com patinetes e bicicletas está inserido num cenário de crescimento dos chamados sistemas de micromobilidade, que envolvem o uso de bicicletas, patinetes e congêneres para trajetos mais curtos – e portanto complementares à circulação dos grandes meios de transporte coletivo que trabalham as grandes distâncias, tais como metrô, corredores de ônibus etc. Para alguns, patinetes e bicicletas também substituem as caminhadas e os carros nos famosos trajetos até a padaria ou centros de bairro.

A grande questão é que a presença destes equipamentos resulta numa concorrência com os demais meios pelo uso do espaço público de circulação na cidade. Daí os conflitos – que, basicamente, são de duas ordens: segurança e infraestrutura. Mas igualmente relevante neste debate, cabe destacar, é o tema da propriedade dos dados e da exploração privada de um bem comum: o espaço de circulação na cidade.

O problema da segurança  é que, com o aumento da circulação desses patinetes, aumenta também  o número de acidentes envolvendo esses veículos e seus usuários. Quedas, colisões com carros e ônibus, e atropelamento por e de pedestres. Do ponto de vista da infraestrutura o patinete compete com o pedestre o uso das calçadas, com as bicicletas e os demais veículos o uso das vias, além do estacionamento ocorrer em locais indevidos, como canteiros e rampas de acesso, atrapalhando claramente os deslocamentos de quem vai à pé.

Ora, também necessita regulação tanto a apropriação e exploração de bens individuais (que são os dados dos usuário), quanto esse bem comum que é o espaço público. Se carros pagam IPVA e taxas para estacionar nas vias, e os ônibus passam por licitações para poder ser concessionários do sistema de transporte, por que os patinetes podem se apropriar livremente dos dados das pessoas e das ruas para gerar renda para seus acionistas?

Em São Paulo, de olho na crise, o prefeito Bruno Covas preparou um decreto provisório, enquanto ainda se estuda uma regulação definitiva que regula o uso dos patinetes na cidade, e que deve entrar em vigor no final do mês. O texto já é motivo de polêmica por exigir o uso de capacetes, proibir a circulação em calçadas, definir limites de velocidade, mas sobretudo pelas multas de até R$ 20 mil para os infratores.

Importante destacar ainda que ontem, quarta-feira, 22/5, aconteceu uma audiência pública para discutir o projeto de lei de autoria do vereador Police Neto que regular não apenas o uso do patinete, mas também da bicicleta compartilhada. O debate girou em torno da exploração do espaço público por estas companhias sem nenhuma permissão de uso – e sem nenhuma contrapartida para a cidade.

Outra grande questão levantada na audiência, da qual participaram grande número de cicloativistas e associações de pedestres, foi uma espécie de consenso de que o patinete, regulado, deve ocupar o espaço dos carros, e não o dos pedestres. Entretanto, considerando que a disputa com os carros é inviável, porque certamente coloca em risco a vida das pessoas, então mais e melhores ciclovias são necessárias na cidade, garantindo a proteção de usuários de patinetes, bicicletas e pedestres. A  questão da publicização dos dados e do acesso a informações geradas por este sistema – a que nem a Prefeitura nem os usuários têm – também tem que ser um elemento absolutamente central dessa regulação.

Para saber mais
A invasão dos patinetes em São Paulo: conflitos e regulação do espaço público

 

Sobre a autora

Raquel Rolnik é arquiteta e urbanista, é professora titular da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP. Foi diretora de planejamento da Secretaria Municipal de Planejamento de São Paulo(1989-92), Secretária Nacional de Programas Urbanos do Ministério das Cidades (2003-07) entre outras atividades ligadas ao setor público. De 2008 a 2014 foi relatora especial da ONU para o Direito à Moradia Adequada. Atuou como colunista de urbanismo da Rádio CBN-SP, Band News FM e Rádio Nacional, e do jornal Folha de S.Paulo, mantendo hoje coluna na Rádio USP e em sua página Raquel Rolnik. É autora, entre outros, de “A cidade e a lei: legislação, política urbana e territórios na cidade de São Paulo” (Studio Nobel, 1997), “Guerra dos lugares: a colonização da terra e da moradia na era das finanças (Boitempo, 2016) e “Territórios em Conflito - São Paulo: espaço, história e política” (Editora três estrelas, 2017).