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A Cidade é Nossa

A rebeldia anti Trump das cidades e estados-santuário

Raquel Rolnik

26/08/2019 09h20

Quando Donald Trump anunciou, no início do seu mandato, algumas medidas de contenção da imigração e maior controle e repressão à presença de imigrantes não documentados nos Estados Unidos, deu início a uma queda de braço que, para o Brasil dos dias de hoje, interessa conhecer e analisar. 

Foto: Trevor Eischen/ CALmatters

Alguns estados e dezenas de municípios contestam judicialmente, e na prática, a aplicação destas medidas em seus territórios, seja através da recusa da intensificação do controle por parte de suas polícias e fiscais locais, seja através da não discriminação da origem da pessoa na provisão de serviços públicos como educação e saúde básica. São áreas autodeclaradas "santuários", uma definição que remonta a milhares de anos, se referindo à possibilidade de acolhimento e refúgio por parte de pessoas que são alvo de perseguição, sobretudo religiosa. 

Em 2017, quando a administração Trump aprovou um conjunto de medidas para intensificar a deportação e coibir a presença  de imigrantes não documentados no país, cerca de 117 administrações locais (entre cidades, counties e estados) se recusaram a implementar as medidas. Grandes cidades como São Francisco, Miami e Washington, e também a Califórnia e o Colorado, adotaram regulações específicas distintas.

No estado da Califórnia, por exemplo, esta resistência ao ordenamento federal inclusive virou lei, por meio da qual as cidades estão proibidas de destinar recursos para a intensificação da repressão a imigrantes. A atitude, de âmbito política e jurídica, foi enfrentada por Trump, que imediatamente decretou que estas administrações não mais receberiam repasses de recursos federais. Mas, por iniciativa dos estados afetados, a Justiça considerou a decisão inconstitucional, considerando que cortes orçamentários para entes federados apenas podem acontecer mediante votação de lei específica no Congresso. 

Agora o mais novo capítulo dessa novela é a aprovação pelo Congresso de novas regras que tornam a imigração legal muito mais difícil. Se o cerco já vinha apertando para as pessoas que pediam o visto no exterior, isso agora vai ser implementado também para as que vão pedir a regularização e a residência quando já estão residindo no país. Programada para entrar em vigor em outubro deste ano, a lei diz que para poder conseguir uma residência, o requerente precisa comprovar um mínimo de renda que não o torne dependente de nenhum tipo de ajuda ou assistência pública, incluindo saúde e educação. Evidentemente a maior parte dos imigrantes deixa seus países, porque está procurando uma alternativa de trabalho e renda.

Essa medida portanto afetará grande parte do contingente de pessoas que se dirigem ao país, bloqueando sua entrada. Por este motivo, mais uma vez, cidades, counties e estados estão contestando a aplicação da medida e litigando na Justiça sua anulação.

Para além de posições de cidades e Estados historicamente democratas e mais inclinados a apoiar pautas sociais e humanitárias, como é o caso da Califórnia, estamos falando de cidades  e regiões inteiras que usam extensamente uma mão de obra estrangeira nos trabalhos mais duros e mal remunerados, como a colheita e semeadura na agricultura, ou a quase totalidade do setor de serviços de manutenção e limpeza, por exemplo, majoritariamente feita por imigrantes.

A queda de braço também tem um outro componente importante, que tem a ver com a ação e a organização política dos próprios imigrantes, predominantemente latino-americanos, e especialmente os mexicanos, os mais afetados por este tipo de legislação, e que reivindicam o direito de permanecer no país. Na Califórnia eles são mais de 30% da população total – e em algumas cidades e counties são a maioria, especialmente nas pequenas cidades rurais dos vales onde se desenvolve a poderosa indústria agrícola do estado.

Para além de conhecer o que se passa nesta região do mundo, o mais interessante dessa história é a discussão, especialmente relevante para o Brasil neste momento, sobre  os limites e possibilidades que os governos locais têm para enfrentar uma política estabelecida em nível federal. 

Temos assistido no Brasil a um movimento semelhante, de estados e municípios da região Norte e Nordeste principalmente, pensarem em alternativas às decisões do governo Bolsonaro, no que diz respeito  a vários temas, dentre os quais o desmatamento das florestas. A tendência, me parece, é isso se aprofundar também como um debate político que nos ensina o quão importante é discutir a política pública no nível local, mesmo que ela eventualmente não tenha competência para mudar alguma decisão anunciada a nível federal.

Sobre a autora

Raquel Rolnik é arquiteta e urbanista, é professora titular da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP. Foi diretora de planejamento da Secretaria Municipal de Planejamento de São Paulo(1989-92), Secretária Nacional de Programas Urbanos do Ministério das Cidades (2003-07) entre outras atividades ligadas ao setor público. De 2008 a 2014 foi relatora especial da ONU para o Direito à Moradia Adequada. Atuou como colunista de urbanismo da Rádio CBN-SP, Band News FM e Rádio Nacional, e do jornal Folha de S.Paulo, mantendo hoje coluna na Rádio USP e em sua página Raquel Rolnik. É autora, entre outros, de “A cidade e a lei: legislação, política urbana e territórios na cidade de São Paulo” (Studio Nobel, 1997), “Guerra dos lugares: a colonização da terra e da moradia na era das finanças (Boitempo, 2016) e “Territórios em Conflito - São Paulo: espaço, história e política” (Editora três estrelas, 2017).