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A Cidade é Nossa

Tombamento não pode ser o único instrumento de preservação da cidade

Raquel Rolnik

05/09/2019 11h00

Mais novo capítulo desta triste história de destruição sistemática das referências históricas culturais e simbólicas de São Paulo, a demolição de um conjunto de sobrados da Vila João Migliari vem nos mostrar o quanto é falível a estratégia do poder público de delegar apenas à gestão do patrimônio histórico, com suas complexas formas de controle e gestão, a regulação das formas de uso e ocupação do território.

A mando do proprietário, que em fevereiro já havia demolido 20 dos 60 casas que compõem a vila, no bairro do Tatuapé, outras 35 caíram no dia 1 de setembro. Casas geminadas, de aluguel, construídas nos anos 1950. Que, assim como centenas de outras, estão sendo derrubadas todos os dias em São Paulo, para dar lugar a torres comerciais ou residenciais.

Graças à indignação dos paulistanos, principalmente os moradores do Tatuapé, a operação foi interrompida e ainda resta de pé um conjunto de cinco sobrados. São casas comuns, sem nenhuma fantasia arquitetônica que lhes confira excepcionalidade – e que não haviam sido, até hoje, reconhecidas na categoria "patrimônio histórico", e portanto protegidas de sua destruição.

Foi exatamente um movimento de moradores da região, inconformados com a perda do lugar – porque, sim, os lugares carregam valores e estes são parte fundamental do existir na cidade – que desde maio havia pedido para a Prefeitura um estudo de tombamento da vila, que motivou a sanha destruidora do conjunto.

Explicando: o proprietário, temendo que o estudo do tombamento fosse acolhido pelo Conselho Municipal de Preservação do Patrimônio Histórico, Cultural e Ambiental da Cidade de São Paulo (Conpresp), o que efetivamente ocorreu no dia seguinte à demolição, a segunda-feira, 2/9, correu para impedir, na prática, as restrições decorrentes da abertura do processo.

Com a comoção gerada pela atitude do proprietário, e graças a um embargo administrativo da subprefeitura da Mooca "por falta de tapume", a demolição foi interrompida e os sobrados restantes deverão ser preservados até a realização de um estudo pelo Departamento de Patrimônio Histórico (DPH). Este estudo inclui, além da Vila João Migliari, outros dois conjuntos semelhantes e de propriedade da mesma família, localizados no Belém (também zona leste) e Pari (região central).

Para além dos elementos éticos e legais envolvidos nesta história, é preciso reconhecer que o tombamento procura enfrentar um desafio que está muito além de suas possibilidades e capacidades. E revela que os instrumentos atuais de planejamento urbano utilizados pela cidade, particularmente planos diretores e leis de zoneamento, apresentam apenas duas possibilidades de mudança do espaço existente: transformar tudo em prédios altos nos eixos de estruturação urbana, ou em prédios de até oito andares nas demais áreas da cidade.

À exceção dos antigos lotamentos da City, os bairros Jardins, que pela força política dos que ali habitam foram "congelados" com suas mansões ajardinadas, e das áreas de preservação ambiental, embora sistematicamente violadas, na cidade a palavra de ordem é derrubar, destruir, substituir. Sem que as devidas análises sobre outras morfologias ou possibilidades sejam levadas em consideração.

Isto incide diretamente sobre as expectativas de valorização dos imóveis por parte dos proprietários – já que a possibilidade de aumentar a área construída do imóvel eleva seu preço no mercado. E basicamente destina tudo que não é prédio ou torre à demolição e desaparecimento. Não pode ser apenas o tombamento a única saída para que formas distintas de conformar cidade possam se transformar mantendo características e formas que já possuíam. Quem disse que não podemos transformar, inclusive adensar, com outras tipologias? Quem decide se é importante ou não preservar os conjuntos de sobradinhos que marcam a paisagem dos bairros constituídos na primeira metade do século 20?

É fundamental que a prefeitura, responsável pelas regras de uso e ocupação do solo, com o apoio dos moradores de São Paulo, desenvolva (o que nunca foi feito) outras formas de manter transformando. Ou transformar mantendo. Antes que seja tarde demais.

Sobre a autora

Raquel Rolnik é arquiteta e urbanista, é professora titular da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP. Foi diretora de planejamento da Secretaria Municipal de Planejamento de São Paulo(1989-92), Secretária Nacional de Programas Urbanos do Ministério das Cidades (2003-07) entre outras atividades ligadas ao setor público. De 2008 a 2014 foi relatora especial da ONU para o Direito à Moradia Adequada. Atuou como colunista de urbanismo da Rádio CBN-SP, Band News FM e Rádio Nacional, e do jornal Folha de S.Paulo, mantendo hoje coluna na Rádio USP e em sua página Raquel Rolnik. É autora, entre outros, de “A cidade e a lei: legislação, política urbana e territórios na cidade de São Paulo” (Studio Nobel, 1997), “Guerra dos lugares: a colonização da terra e da moradia na era das finanças (Boitempo, 2016) e “Territórios em Conflito - São Paulo: espaço, história e política” (Editora três estrelas, 2017).