Situação da população vivendo na rua é a cara das políticas públicas
Raquel Rolnik e Aluízio Marino*
Não precisa ser um especialista em moradia para perceber a verdadeira explosão no número de pessoas vivendo nas ruas em São Paulo. O que podemos notar, circulando pela cidade, é que além do número, também é muito mais visível a presença de mulheres e crianças morando inclusive nas ruas de bairros da capital paulista, para além da região central.
O fenômeno está diretamente relacionado ao contexto atual de recessão econômica, o crescimento do desemprego e a crise da moradia. Para piorar, num momento como esse, em que claramente há uma necessidade de intervenções públicas voltadas à proteção dessa população, o orçamento da cidade não contempla um maior investimento nessa direção. Pelo contrário, verifica-se que pelo menos nos últimos seis anos os recursos voltados para as políticas de assistência social, e em especial aos programas dirigidos à população em situação de rua, permanecem estáveis mesmo que o orçamento geral da cidade tenha aumentado um pouco.
Ao analisarmos os dados orçamentários da cidade, fica evidente que as políticas para a população que vive nas ruas nunca foi prioridade. As dificuldades dos trabalhadores da assistência social, que lidam diariamente, e há muitos anos, com a escassez de recursos, é ainda maior pelo fato de que as mudanças de gestão impõem a descontinuidade de programas e ações, muitas vezes sem que estes tenham sido suficientemente desenvolvidos.
Foi o que ocorreu por exemplo com o programa Braços Abertos, que investiu em hotéis sociais articulados a ações de saúde mental e trabalho, interrompido no governo Doria, que anunciou a construção de 20 CTAs (Centros Temporários de Acolhimento), considerando a iniciativa como uma "porta de entrada para uma nova vida". Entretanto os CTAs são rejeitados por várias razões. Além das denúncias que expuseram as péssimas condições desses equipamentos, com acomodações insalubres, limpeza precária e comida estragada, pesam outras questões. A grande maioria deles não realiza atendimentos para famílias nem casais, só aceitando homens. Mulheres e crianças, portanto, ficam de fora. O atendimento de caráter temporário não contribui para o desenvolvimento da autonomia dessas pessoas. A porta de entrada se transforma em porta de saída no dia seguinte.
Por outro lado, se tomarmos as políticas e orçamento da rubrica Moradia, que tem tudo a ver também com a problemática, a gestão Bruno Covas inaugurou um edifício com aluguel social voltado para pessoas e famílias em situação de rua, uma iniciativa importante justamente no sentido da autonomia e estabilidade. Infelizmente, é ainda uma espécie de piloto que demandaria escala para poder cumprir seu papel de política pública. Mas para poder crescer, estas e outras iniciativas no campo da moradia, inclusive moradias associadas a serviços de saúde mental e assistência social, exigiriam uma quantidade importante de recursos públicos para se viabilizar.
O Ministério responsável pela área acabou de liberar R$ 400 milhões para construção de moradias no âmbito do programa Minha Casa Minha Vida, mas esse dinheiro garante apenas os recursos suficientes para pagar obras já iniciadas e medidas até julho deste ano, que estão paralisadas. Estes recursos não cobrem nem as medições de obras de agosto e setembro. Portanto, embora a liberação destes recursos esteja concentrada majoritariamente na faixa 1 (para famílias com renda de até R$ 1.800 por mês), que é de fato a faixa prioritária para uma política habitacional em tempos de crise, o governo já anunciou que para a faixa 1 não haverá mais recursos.
Não há qualquer sugestão de outro programa no lugar. Ou seja, os municípios não contarão com recursos do governo federal para políticas de moradia voltadas para a população, que está hoje vivendo na rua ou em situações de extrema precariedade habitacional.
Enquanto isso, os próprios moradores que estão vivendo nas ruas vão criando suas redes e condições de sobrevivência, sem apoio nem recursos públicos, mas muitas vezes contando com solidariedade de organizações e coletivos da sociedade. Na região dos Campos Elísios, por exemplo, muita gente pensa que as pessoas estão concentradas nas ruas por conta da existência de uma oferta de drogas. Este fluxo de pessoas, conhecido como Cracolândia, concentra, sim, usuários de álcool e outras substâncias químicas. Entretanto, quem relaciona a concentração de moradores com a droga desconhece que, diante de uma absoluta falta de políticas de acolhimento, as pessoas estabelecem uma rede de sobrevivência e apoio mútuo que permite que consigam existir mesmo que numa condição absolutamente precária.
Esses lugares são reflexo de uma cidade que exclui ao invés de acolher. Por incrível que pareça, é ali que os cidadãos invisíveis – egressos do sistema prisional, transexuais, carroceiros, pessoas com problemas de saúde mental – se sentem seguros.
Obviamente, essa reflexão não romantiza a vulnerabilidade. Ninguém pode defender que as pessoas permaneçam nessa situação. O triste é que, em contextos como os das cracolândias, a principal política pública oferecida seja a violência institucional, com ações coordenadas que objetivam sufocar e dispersar os fluxos. Para sufocar a prefeitura e o governo do estado estão fechando os serviços próximos a essas localidade. No campo da dispersão, utilizam de constantes ações de limpeza e repressão policial. Sob a justificativa do combate ao tráfico e da guerra às drogas, inúmeros direitos são violados. Ao invés de acabar com o problema, como prometem há anos, acabam piorando as condições de vulnerabilidade dessa população.
A situação das cracolândias revela a face das políticas públicas. Em tempos de crise, quando mais estas políticas são necessárias, não há recursos para moradia ou assistência social. Mas para bombas, armas, repressão e limpeza com jato de água cinco vezes por dia os recursos abundam.
* Doutorando da UFABC e pesquisador do LabCidade – Laboratório Espaço Público e Direito à Cidade.
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