Leituras do voto estadunidense: a escala importa!
Por Aluízio Marino* e Raquel Rolnik
A escolha da escala é uma das técnicas mais importantes para a produção dos mapas. Determinadas questões só podem ser verificadas em determinadas escalas. A escala sempre importa, e quando falamos de dinâmicas sociopolíticas a leitura de um mesmo fenômeno pode ser radicalmente alterada a partir da escala que se utiliza. É importante saber que a escolha de escala não é trivial nem descompromissada: para além de uma dimensão quantitativa, relacionada ao tamanho do território, existe também uma dimensão qualitativa e estratégica em sua definição.
Um bom exemplo são os mapas de eleições. O LabCidade já fez uma análise multiescalar das eleições presidenciais no Brasil em 2018, evidenciando que os mapas dos votos em escala regional simplificaram a diversidade e às desigualdades dentro das regiões e, pior, incentivaram uma falsa narrativa de que a eleição de Bolsonaro seria resultado de uma polarização: nordeste versus o resto do Brasil.
Certas escolhas de escala para a leitura destas eleições estadunidenses também podem simplificar as disputas e conflitos internos de um país dividido, assim como ocorreu no Brasil. A escala dos Estados é a usualmente empregada na geografia eleitoral dos EUA, por ser esta a unidade política decisiva na contabilidade eleitoral — quem obtém a maioria dos votos de um Estado leva todos os seus delegados para o Colégio Eleitoral. O problema é que, para além do pragmatismo do critério adotado, esta escala apresenta uma leitura simplista e categórica do Sul e do Meio-Oeste como territórios dos republicanos, e as costas nordeste e oeste do país (com o chamado "cinturão da ferrugem") como territórios dos democratas.
Ao deslocarmos a escala dos mapas para os condados a narrativa se altera radicalmente. Assim como nas eleições passadas, vencidas por Trump, o que os mapas no nível dos condados revelam é uma geografia eleitoral muito mais complexa, com a existência de verdadeiros "arquipélagos urbanos". A divisão no seio do eleitorado nos Estados Unidos se reflete no processo de urbanização do país: os votos republicanos/conservadores estão concentrados nas zonas rurais, enquanto os votos democratas/liberais se fazem presentes nas grandes cidades. Já os subúrbios abastados, tradicionalmente republicanos, são objeto de disputa acirrada. Muitos analistas estadunidenses compreendem esta divisão como o cosmopolitismo urbano (democrata) versus o conservadorismo rural e suburbano predominantemente branco (republicano).
"Desafio aceito! Aqui está uma transição entre a área de superfície dos condados dos EUA e sua população associada. Isso sem dúvida fornece uma leitura muito mais precisa da situação."
"Como muitos de vocês notaram, o mapa que usei não está usando os resultados de votação adequados da eleição presidencial dos EUA de 2016. O equívoco veio do mapa postado por Lara Trump, que mostra mais vermelho do que deveria. Aqui está uma versão atualizada do GIF."
O mapa das eleições nos EUA de 2016 é a expressão de um modelo territorial que concentrou diversidades étnicas e raciais, mesmo que segregadas, durante décadas. Já os subúrbios abastados no entorno das grandes cidades, onde brancos se isolavam e os votos se destinavam majoritariamente ao Partido Republicano, começaram a mudar nos últimos 15 anos: uma mescla de política de crédito habitacional e movimento de novas gerações de imigrantes foi tornando estes subúrbios mais diversos racial e etnicamente. O fenômeno foi inclusive bastante mobilizado por Trump em suas campanhas, com um discurso em defesa das "donas de casa suburbanas" imagem clássica dos anos 1950/60, ignorando que estas foram se tornando cada vez mais raras com o passar dos anos, e os bairros de famílias brancas e cerquinhas baixas cada vez mais minoritários.
Apesar de ainda não existir resultado final destas eleições entre Donald Trump e Joe Biden, a leitura do território eleitoral como grandes cidades democratas, zonas rurais escassamente povoadas republicanas, e subúrbios em disputa parece corresponder cada vez mais à imagem da real divisão sociopolítica territorial dos Estados Unidos.
* Aluízio Marino é mestre e doutorando em Planejamento e Gestão do Território pela Universidade Federal do ABC. Especialista em Gestão de Projetos Culturais pelo Centro de Estudos Latino Americanos sobre Cultura e Comunicação (CELACC). Bacharel em Gestão de Políticas Públicas pela Universidade de São Paulo (USP). Pesquisador do LabCidade, coordena a produção cartográfica do Laboratório. Também desenvolve ações de mapeamento coletivo com diversos movimentos sociais e coletivos autônomos.
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