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O consumidor ganha com uma empresa pública com desempenho de privada?

Raquel Rolnik

17/01/2019 11h53

Enxugar gastos públicos, introduzir métodos e critérios privados na gestão das empresas estatais tem sido uma espécie de palavra de ordem generalizada e consensual no país. Evidentemente este quase-mantra tem a ver com histórias concretas de desmandos, desvios e partidarização do Estado e seu uso como cabide de empregos desnecessários para suas atividades-fim.

Além de privatizações massivas, que não abordaremos aqui, as medidas de reestruturação de empresas estatais apontam em duas direções básicas: corte de custos e diversificação da captação de recursos. Em geral cortar custos implica em diminuição de corpo permanente de funcionários, terceirização e subcontratação de várias atividades, fechamento de agências e sedes descentralizadas. Já no tema recursos, as estratégias têm sido a abertura de parte do capital das empresas em Bolsa, a diversificação de atividades e a busca do lucro em suas atividade-fim.

A tese é que assim, com mais recursos para investir, as empresas finalmente podem prestar um serviço melhor para os cidadãos. Será? Neste recesso de final de ano pude vivenciar na pele os efeitos da reestruturação de uma empresa estatal – a Cemig – (Companhia Energética de Minas Gerais), considerada um case (sim, assim em inglês) de sucesso na adoção de uma estratégia privada de gestão.

Uma empresa mista de capital aberto controlada pelo Governo de Minas, a Cemig foi criada em 1952 por Juscelino Kubistchek, então governador do estado, e posteriormente presidente do Brasil. E, desde a construção da hidrelétrica de Três Marias, a primeira usina brasileira de grande porte, se transformou em uma das referências do setor elétrico no país.

Após a Andrade Gutierrez comprar um terço de suas ações em 2010, a elétrica mineira dobrou de valor na Bolsa, superando a Eletrobrás. De acordo com informações constantes no site da empresa, em setembro de 2018 a CEMIG tinha 140 mil investidores em 38 países, com ações listadas não apenas na Bovespa, mas também na Bolsa de Valores de Nova Iorque e na Bolsa Madrid.

O lucro líquido da companhia nos nove primeiros meses de 2018 foi de R$ 998 milhões, um aumento de 131,6% em relação ao mesmo período de 2017. Além disso, nos últimos 12 meses, as agências internacionais de crédito – Moody's, Standard & Poor's e Fitch – melhoraram os ratings (notas de crédito) das ações das principais empresas do grupo, que passaram do grau especulativo para o grau de investimento. Os investidores estão portanto bastante satisfeitos, mas e os clientes da CEMIG? As pessoas que dependem de seus serviços?

Em uma pequena cidade turística no sul de Minas Gerais, moradores, empreendedores e turistas viveram o inferno de ficar dias sem luz, exatamente no período de festas, situação aliás que vem se repetindo já há alguns anos. De acordo com o relato dos moradores, desde que uma equipe permanente de eletricitários baseada na região foi substituída por empresas terceirizadas, o serviço não parou de piorar. Pude constatar pessoalmente a presença de equipe terceirizada perdida no meio de uma zona rural que desconhecia, incapaz de localizar o defeito depois de vários dias e que dependia de comandos de um escritório regional da Cemig que só podia ser acessado por celular. Nota: nesta região não há sinal de celular! Ouvi dos moradores queixas sistemáticas de pedidos de mudança de transformador que se acumulam há meses, de cortes de energia a todo momento, além de contas de consumo que não param de crescer.

De fato, segundo o Sindieletro-MG, um levantamento feito pelo Dieese (Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos) aponta que em 1997 a Cemig tinha 17.516 trabalhadores no quadro próprio, e fechou 2017 com 5.864 eletricitários. Estima-se que a empresa tenha atualmente mais de 20 mil terceirizados. Não tivemos acesso a informações de onde estavam estes funcionários: o quanto eram um "cabide de empregos mamando nos cofres públicos" ou técnicos distribuídos por todo o Estado que conheciam profundamente o lugar aonde trabalhavam e respondiam rápida e eficientemente a demanda, inclusive de uma cidade irrelevante do ponto de vista da receita da companhia.

Imagino que esta situação não é exclusiva de uma cidade específica (mal) atendida pela Cemig. Mas, como os investidores com ações na Bolsa estão felizes, a empresa dá lucro e a Standard & Poor's reconhece a qualidade da companhia, então está tudo bem…

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Sobre a autora

Raquel Rolnik é arquiteta e urbanista, é professora titular da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP. Foi diretora de planejamento da Secretaria Municipal de Planejamento de São Paulo(1989-92), Secretária Nacional de Programas Urbanos do Ministério das Cidades (2003-07) entre outras atividades ligadas ao setor público. De 2008 a 2014 foi relatora especial da ONU para o Direito à Moradia Adequada. Atuou como colunista de urbanismo da Rádio CBN-SP, Band News FM e Rádio Nacional, e do jornal Folha de S.Paulo, mantendo hoje coluna na Rádio USP e em sua página Raquel Rolnik. É autora, entre outros, de “A cidade e a lei: legislação, política urbana e territórios na cidade de São Paulo” (Studio Nobel, 1997), “Guerra dos lugares: a colonização da terra e da moradia na era das finanças (Boitempo, 2016) e “Territórios em Conflito - São Paulo: espaço, história e política” (Editora três estrelas, 2017).