PL que tramita no Congresso quer induzir municípios a privatizar saneamento
Raquel Rolnik
20/05/2019 11h20
Tramita no Congresso Nacional a Medida Provisória nº 868 de 2018, agora convertida no PLV/8, que altera o marco regulatório atual do saneamento. Sob a justificativa de avançar a cobertura do saneamento no país, de fato necessário e urgente, o PL não enfrenta os reais obstáculos para a universalização, oferecendo um modelo único de concessão para empresas privadas que induz especialmente a venda das empresas estaduais.
Apesar dos vultosos investimentos no período 2003-2012 ter garantido avanços importantes, como a expansão da cobertura no abastecimento de água no Nordeste (que passou de 69,4% para 88% em 2015) e no acesso a esgotamento sanitário adequado no Sul (de 25,7% para 65,9% em 2017), ainda estamos longe da almejada universalização, principalmente na coleta e tratamento do esgoto.
E como o PL pretende enfrentar esta dificuldade? Induzindo os municípios a licitar seus serviços de água e esgoto para empresas privadas. Para isto, o PL simplesmente fragiliza um instrumento de cooperação entre entes da federação, que atualmente permite que municípios, estados e União voluntariamente se juntem através de "contratos de programa" para realizar uma gestão associada dos serviços – o que também, pela regulação vigente, é dispensado de licitação.
Por outro lado o PL garante que, se a empresa for privatizada, ela pode continuar com seus contratos de programa, o que a lei vigente hoje não permite. Ou seja: coibir que os municípios se associem para prestar os serviços, de um lado, e de outro, garantir, para quem comprar uma empresa, que os municípios associados venham junto, o que é atualmente proibido. Outra das novidades contida neste projeto é conceder uma prerrogativa para os estados de criarem "blocos de municípios", figura que não existe no nosso modelo federativo, para prestar serviços de saneamento. Ora, o próprio texto do governo é claro na justificativa destas medidas: sem a MP, as empresas públicas têm vantagens competitivas.
Não se trata aqui de defender que as empresas públicas, estaduais ou municipais, são a maior maravilha. Ou que estão prestando um serviço de alta qualidade com tarifas acessíveis. O problema é que, ao simplesmente substituir o concessionário de público para privado, podemos sufocar algumas empresas que, sim, estão avançando nesta direção. Além disso, o modelo proposto vai ampliar o mercado de saneamento, mas não necessariamente resolver os gargalos existentes para universalização.
Isto porque os gargalos são de muitas ordens: a dominância de um modelo tecnológico tradicional pouco adequado às áreas de assentamentos precários (como ocupações de favelas e morros), à zona rural e aos pequenos municípios, que são hoje uma parte muito significativa dos sem-saneamento. Além disso, pesam a falta de integração da política de saneamento com outras políticas públicas, sobretudo as de habitação e política urbana, e a desconexão com outras dimensões do saneamento, como a coleta e destinação do lixo e a drenagem.
Não por acaso a fúria de abertura de mercados para as empresas privadas no país ocorre justamente em um momento em que cidades e regiões que privatizaram seus serviços nos anos 1980 e 1990, na Europa e Estados Unidos, entre outras regiões, estão fazendo o caminho de volta. De acordo com um estudo publicado em 2018 pelo Transnational Institute, da Holanda, detectou 835 exemplos de re-municipalização de serviços públicos em um universo de 1.600 cidades de 45 países que haviam sido privatizados desde o ano de 2000.
Sobre a autora
Raquel Rolnik é arquiteta e urbanista, é professora titular da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP. Foi diretora de planejamento da Secretaria Municipal de Planejamento de São Paulo(1989-92), Secretária Nacional de Programas Urbanos do Ministério das Cidades (2003-07) entre outras atividades ligadas ao setor público. De 2008 a 2014 foi relatora especial da ONU para o Direito à Moradia Adequada. Atuou como colunista de urbanismo da Rádio CBN-SP, Band News FM e Rádio Nacional, e do jornal Folha de S.Paulo, mantendo hoje coluna na Rádio USP e em sua página Raquel Rolnik. É autora, entre outros, de “A cidade e a lei: legislação, política urbana e territórios na cidade de São Paulo” (Studio Nobel, 1997), “Guerra dos lugares: a colonização da terra e da moradia na era das finanças (Boitempo, 2016) e “Territórios em Conflito - São Paulo: espaço, história e política” (Editora três estrelas, 2017).