Morar no centro em apartamentos sem garagem: popularização ou especulação?
Raquel Rolnik
13/06/2019 13h27
O mercado imobiliário residencial está mudando na capital paulista. É o que apontam os dados recentes da EMBRAESP (Empresa Brasileira de Estudos do Patrimônio), do SECOVI (Sindicato da Habitação) e as análises da Secretaria Municipal de Urbanismo e Desenvolvimento da Prefeitura. As principais mudanças se referem à diminuição do número de garagens, do tamanho dos apartamentos e sua localização na cidade.
De acordo com o Informe Urbano n° 17 de 2013 nos anos 1990 e início da década seguinte sempre se construiu mais garagens do que apartamentos residenciais na cidade. Entre 1992 e 2012 foram 513.027 vagas de garagens para 314.292 unidades residenciais, em uma média de 1,6 vagas por apartamento.
O informe de 2018 mostra que esta proporção vai caindo ao longo da última década, chegando a 0,8 garagens por apartamento em 2017. Esta tendência é acompanhada também por uma diminuição dos tamanhos médios dos apartamentos lançados: a área média útil caiu de 140 m² em 2006 para 60 m² em 2017. As médias, entretanto, escondem particularidades importantes. Observando melhor os dados, constatamos que, embora seja verdade que os lançamentos da última década tenderam a ser menores e com menos vagas de garagem, muito em função dos tetos de financiamento do programa Minha Casa Minha Vida, a mudança mais significativa é o aparecimento no mercado de um novo tipo de apartamento: minúsculo, sem vaga de garagem e localizado predominantemente na área central.
Os prédios sem vaga de garagem, ou de prédios aonde apenas uma parte das unidades tem vagas,representam hoje quase a metade dos lançamentos residenciais na cidade. E as mudanças na legislação sem dúvida tiveram um papel neste crescimento. Nas grandes cidades do mundo, São Paulo incluída, desde os anos 1930/1940 a lei exigia um número mínimo de vagas na garagem por apartamento.
De acordo com o Plano Diretor de 2004, apartamentos de até 200 m² eram obrigados a incluir uma vaga, o que aumentava de acordo com a área. Entretanto, o próprio Plano Diretor de 2004 admitia exceções – para apartamentos menores do que 50 m² (dependendo da relação de sua área construída com a área do terreno), para apartamentos construídos em Zonas Especiais de Interesse Social (ZEIS) e dentro do perímetro da Operação Urbana Centro (OUCentro).
O PDE de 2014, por outro lado, estabeleceu para as áreas próximas de metrôs e corredores de ônibus não um número mínimo, mas um número máximo de vagas de garagem. Os novos produtos imobiliários então seriam uma decorrência da legislação?
Ao examinarmos a série histórica dos lançamentos de prédios sem vagas de garagem, é possível relacionar estes edifícios com áreas de ZEIS em grande número na área central e perímetro da OUCentro. Mas a explosão dos prédios sem garagem começa a ocorrer na década de 2010, junto com o lançamento de apartamentos com área construída inferior a 40 m², exatamente em um momento de explosão de preços de terrenos. Assim eliminar garagem e diminuir o tamanho foram estratégias claras de diminuição de preço em um contexto de aumento enorme de preços por metro quadrado!
Inclusive os maiores preços por metro quadrado estão justamente nos microapartamentos. De acordo com o informe da prefeitura os apartamentos pequenos entre 25 e 45 m², que representam cerca de 20% do universo lançado no município como um todo e 46 % entre os que foram lançados na subprefeitura da Sé, foram os que sofreram os maiores saltos de preço a partir de 2010, passando de R$ 4.392,00/ m² em 2009 para R$ 9.413,00/ m² em 2011 – ou seja, com um crescimento de 114% em dois anos. Na comparação entre 2007 e 2014 os preços dessa faixa cresceram 102%.
Por outro lado, é ainda prematuro avaliar os efeitos do PDE sobre a oferta de um novo tipo de apartamento junto aos eixos. Os dados já indicam que na região sudoeste, próxima à avenida Rebouças, mas também na região da Vila Mariana e Brooklyn, começam a surgir mega prédios muito altos anunciando zero ou uma vaga para carro.
Mas, como o setor imobiliário pressionou e conseguiu uma "regra de transição" no número de vagas na lei de zoneamento de 2016 (que expira agora), e como a prefeitura não disponibilizou os dados de lançamentos por ano da aprovação, ainda é prematuro avaliar os efeitos da estratégia do Plano Diretor de "adensar" os eixos de transporte coletivo com apartamentos sem garagem para usuários do transporte coletivo.
Mudanças culturais nas formas de morar e circular das classes médias , e o próprio mal estar do congestionamento, tem levado uma parte deste grupo não apenas para uma outra área da cidade, o centro, mas também a um novo tipo de produto. Entretanto, e precisaremos de mais estudo para realmente afirmar isto com propriedade, estamos mais diante de uma nova forma de produção imobiliária altamente rentável do que diante da tão almejada "popularização" das boas localizações.
Sobre a autora
Raquel Rolnik é arquiteta e urbanista, é professora titular da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP. Foi diretora de planejamento da Secretaria Municipal de Planejamento de São Paulo(1989-92), Secretária Nacional de Programas Urbanos do Ministério das Cidades (2003-07) entre outras atividades ligadas ao setor público. De 2008 a 2014 foi relatora especial da ONU para o Direito à Moradia Adequada. Atuou como colunista de urbanismo da Rádio CBN-SP, Band News FM e Rádio Nacional, e do jornal Folha de S.Paulo, mantendo hoje coluna na Rádio USP e em sua página Raquel Rolnik. É autora, entre outros, de “A cidade e a lei: legislação, política urbana e territórios na cidade de São Paulo” (Studio Nobel, 1997), “Guerra dos lugares: a colonização da terra e da moradia na era das finanças (Boitempo, 2016) e “Territórios em Conflito - São Paulo: espaço, história e política” (Editora três estrelas, 2017).