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A máquina de despejos de aluguel e a crise da moradia em São Paulo

Raquel Rolnik

15/08/2019 13h51

Com Pedro Mendonça, Fernanda Moreira, Débora Ungaretti, Aluízio Marino e Martim Ferraz

Pelo menos desde 2012 temos acompanhado remoções coletivas em São Paulo e registrado o fenômeno através de um mapeamento na escala da metrópole e de observações em campo.

Por meio do acompanhamento in loco de várias situações de remoções coletivas, pudemos constatar que parte das ocupações de terra ou edifícios ameaçadas de remoção ou que já foram removidas são constituídas por pessoas que viveram situações de despejo por falta de pagamento de aluguel, ou declararam que procuraram terrenos ou edifícios vazios para morar por não conseguir mais arcar com os ônus excessivo do pagamento do aluguel. Estaríamos diante, portanto, de uma crise do aluguel, marcada por subida de preços e impossibilidade de seu pagamento?

Em função dos trabalhos desenvolvidos no âmbito do Observatório de Remoções, o Labcidade-FAUUSP firmou um convênio com a Promotoria de Habitação e Urbanismo do Ministério Público de São Paulo, que estava preocupada com as desocupações que vinham ocorrendo na cidade de São Paulo, e pretendia elaborar uma leitura mais ampla dessa problemática para que fosse possível definir alternativas de enfrentamento dessas situações para além da atuação individualizada nos processos.

Diante desse contexto, e dos limites da base de dados colaborativa sobre remoções, adotamos novas estratégias para compreender a extensão e os impactos dessa problemática no território.

Considerando que o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo disponibiliza de forma digital um banco de sentenças (base de dados pública), desenhamos uma metodologia, baseada em ferramentas de data web scraping, para extrair deste banco informações relativas a ações judiciais de reintegração de posse de imóveis, despejos e desapropriações, que podem, em sua maioria, resultar em remoções forçadas.

A partir dessa metodologia, foram identificadas 316.630 sentenças em processos judiciais em todo o estado de São Paulo, concentradas no período entre 2013 e 2018, dentre os quais 170.850 estão situados na Região Metropolitana de São Paulo. Como o levantamento abarca somente ações que já tiveram sentença em primeira instância – e, portanto, não leva em conta processos que ainda estejam em litígio – o número dos processos no período é certamente maior.

A partir do Gráfico 01 abaixo, que apresenta a concentração de processos por mil domicílios de cada região administrativa judiciária, identificamos que as Regiões de Ribeirão Preto e da Grande São Paulo são as que concentram, proporcionalmente em relação a seus respectivos número de domicílios, o maior número de decisões judiciais relativas a despejos e remoções no estado.

Mapa 01: Regiões Administrativas Judiciais do Estado de São Paulo. Fonte: TJSP. Elaboração: Pedro Mendonça, LabCidade, 2019.

 

Gráfico 01: Concentração de processos judiciais ligados a disputas por terra por mil domicílios por região administrativa judiciária. Fonte: TJSP. Elaboração: Pedro Mendonça, LabCidade, 2019.

Na Região Metropolitana de São Paulo, cujo perímetro se aproxima da 1ª Região Administrativa Judiciária (RAJ), conforme Mapa 2 abaixo, entre 2013 e 2018, foram identificados cerca de 129 mil despejos, 19 mil processos de reintegração de posse (coletiva e individual) e cerca de 9,5 mil desapropriações, conforme Gráfico 02 abaixo.

Mapa 01: Comarcas na Região Metropolitana de São Paulo. Em verde, contorno da Região Administrativa Judiciária da Grande São Paulo (1ª RAJ). Fonte: TJSP. Elaboração: Pedro Mendonça, LabCidade, 2019.

 

Gráfico 02: Número de processos judiciais ligados a disputas por terra na 1ª Região Administrativa Judiciária, que aqui consideramos correspondente à Região Metropolitana de São Paulo, categorizados por tipo de ação. Fonte: TJSP. Elaboração: Pedro Mendonça, LabCidade, 2019.

Nos chama muito a atenção o volume dos despejos no conjunto dessas ações judiciais, e, dentro desta categoria, o volume de despejos por falta de pagamento de aluguel. A dimensão massiva dos despejos e o peso do aluguel reforçam as narrativas que estão surgindo a partir de observações in loco de que estes são fatores determinantes para o ciclo de remoções que observamos desde 2012.

Podemos observar, ainda, uma tendência de crescimento das sentenças relativas aos processos das três categorias a partir de 2013, conforme o Gráfico 03.

Gráfico 03: Número de sentenças proferidas na Região Metropolitana de São Paulo entre 2013 e 2018 por tema. Fonte: TJSP. Elaboração: Pedro Mendonça, LabCidade, 2019.

Esses números englobam inúmeras situações. A partir da metodologia de coleta de dados, conseguimos identificar qual o uso do imóvel em disputa em apenas 10% dos processos, e concluímos que 70% desse universo são casos de imóveis de uso residencial. Ou seja, nem todos os casos identificados implicam em remoções, já que ali podem estar incluídas, por exemplo, desapropriações de terrenos livres ou reintegrações de posse de terrenos ocupados por outros usos que não o residencial.

Por outro lado, esses dados não representam um retrato atual das remoções e despejos, que ocorrem, na maioria das vezes, antes das sentenças finais. Para ilustrar o que estamos falando, acompanhamos em agosto de 2018 o caso da remoção de três ocupações na zona norte de São Paulo que ocorreram a partir de liminar de uma reintegração de posse, que até hoje não tem uma sentença. Neste caso, assim como em milhares de outros, ainda que sem uma sentença definitiva, os processos judiciais impactaram de forma irreversível na vida das famílias.

De qualquer forma, a magnitude destes dados nos revela que estamos diante de uma verdadeira "máquina de remover" em São Paulo.

Para poder entender melhor o fenômeno na Região Metropolitana de São Paulo, os dados foram agrupados por tema e territorializados, já que os processos não se encontram uniformemente distribuídos pela metrópole. Foi possível georreferenciar com precisão apenas 20% do total de casos, nos quais os endereços dos imóveis objeto da ação estavam expressamente mencionados nas sentenças. Nos casos em que não foi possível identificar no texto das sentenças a especificação dos endereços de quem estava sendo despejado ou desapropriado a informação foi mapeada a partir do foro de origem da ação judicial. Os foros com maior número de processos por domicílios, conforme o Gráfico 04 e o Mapa 03 abaixo, são Tatuapé, Central e Santana.

Mapa 03: Abrangência dos foros regionais da comarca de São Paulo. Fonte: TJSP. Elaboração: Pedro Mendonça, LabCidade, 2019.

 

Gráfico 04: Número de processos relacionados a disputas pela terra por mil domicílios e por foro judicial na Região Metropolitana de São Paulo. Fonte: TJSP. Elaboração: Pedro Mendonça, LabCidade, 2019.

Podemos, de início, afirmar que estas regiões concentram hoje os maiores conflitos em relação à posse e a deslocamentos de pessoas dos imóveis que ocupam. Para entender melhor o que está ocorrendo nestes territórios, e por que ali são mais intensos os deslocamentos, é necessário cruzar estes dados com vários outros, o que certamente faremos a seguir.

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Sobre a autora

Raquel Rolnik é arquiteta e urbanista, é professora titular da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP. Foi diretora de planejamento da Secretaria Municipal de Planejamento de São Paulo(1989-92), Secretária Nacional de Programas Urbanos do Ministério das Cidades (2003-07) entre outras atividades ligadas ao setor público. De 2008 a 2014 foi relatora especial da ONU para o Direito à Moradia Adequada. Atuou como colunista de urbanismo da Rádio CBN-SP, Band News FM e Rádio Nacional, e do jornal Folha de S.Paulo, mantendo hoje coluna na Rádio USP e em sua página Raquel Rolnik. É autora, entre outros, de “A cidade e a lei: legislação, política urbana e territórios na cidade de São Paulo” (Studio Nobel, 1997), “Guerra dos lugares: a colonização da terra e da moradia na era das finanças (Boitempo, 2016) e “Territórios em Conflito - São Paulo: espaço, história e política” (Editora três estrelas, 2017).