Lei de Anistia, um instrumento do não-planejamento da cidade
Raquel Rolnik
27/09/2019 15h30
Por Raquel Rolnik, com Pedro Henrique Rezende Mendonça*
O que a aprovação por unanimidade na Câmara de Vereadores de um projeto de lei de anistia revela sobre a cidade? Estamos falando de São Paulo e da aprovação, por 51 votos, do Projeto de Lei 171/20, que anistia imóveis irregulares construídos ou reformados até 2014, data da aprovação do último Plano Diretor .
O texto aprovado autoriza a regularização automática de imóveis que atualmente são isentos do pagamento de IPTU, ou seja, cujo valor venal atualizado é de até R$ 160 mil. Nesse caso, os proprietários não precisarão fazer nada: irão receber a documentação de regularidade em casa, que também será gratuita.
A proposta também permite a adequação de propriedades com valor venal maior do que este e com até 1.500 m² de área. Neste caso, para os imóveis residenciais e comerciais, será necessário apresentar a declaração do proprietário, acompanhada da assinatura de engenheiro responsável, o que poderá ser feito no site da Prefeitura de São Paulo. Além disso, devem ser recolhidas taxas de R$ 10 por metro quadrado a ser regularizado.
Para os imóveis de mais de 1.500 m², a anistia dependerá de vistoria e eventual pagamento de outorga onerosa. Não poderão ser regularizados imóveis em áreas de proteção ambiental ou cultural. Todas as igrejas e locais de culto podem ser regularizadas gratuitamente, assim como as Habitações de Interesse Social (HIS) e Habitações de Mercado Popular (HMP).
Esta não é a primeira vez que a municipalidade anistia construções irregulares. Pelo contrário, temos uma longa história de anistias promulgadas praticamente em todas as gestões municipais desde 1913, quando foi adotada a primeira lei que regulamentou a abertura de loteamentos, e que veio acompanhada, no ano seguinte, 1914, de uma lei de anistia que reconhecia todas as ruas que já estavam abertas antes e em desacordo com esta lei.
A partir dos anos 1930 este instrumento passou a ganhar mais importância. Por uma lado leis mais detalhadas passaram a controlar não apenas a abertura de ruas, mas também as construções, e as anistias continuaram, sempre apontando um marco temporal, "apenas as construções que foram feitas até esta data", afirmando sempre nas justificativas de que se trata de regularizar um passivo, e que dali em diante não irá mais existir. Exatamente o que está sendo feito agora, com a anistia que perdoa o que já estava construído em 2014.
Foi mais especificamente no governo de Jânio Quadros, que comandou a cidade pela primeira vez de 1953 a 1955, que a anistia se tornou um mecanismo político fundamental, um dos instrumentos importantes para estabelecer uma relação de mediação entre os vereadores e os moradores de bairros abertos sem pedir licença ou obedecer a lei e que, por serem irregulares, não poderiam receber serviços públicos como água e eletricidade. A anistia era, portanto, o mecanismo que permitia que o serviço pudesse ser implementado.
A partir daí a cidade seguiu operando o modelo por meio do qual é produzida à margem da lei para depois ter sua inserção negociada dentro do quadro legal, sempre com a intermediação política dos governantes, de modo que o mecanismo de intermediação nunca deixe de existir. Esta lógica de negociar a possibilidade de reconhecer um pedaço da cidade é até hoje central para o funcionamento da Câmara. Mas com serviços públicos melhor distribuídos pela cidade, ainda que de forma desigual, não se pode dizer que a moeda de troca da regularização hoje é poder receber investimentos em água, luz ou eletricidade.
O projeto de lei recentemente aprovado na Câmara se apoia no artigo 367 do Plano Diretor Estratégico de 2014, que prevê uma única anistia durante toda a vigência do plano. O texto foi encaminhado para a Câmara pelo Executivo em março, e passou por alterações que ampliaram a abrangência da lei. Se no projeto original apenas imóveis menores que 500 m² poderiam ser regularizadas por processo declaratório, no projeto aprovado o limite passa para 1.500 m². Assim, praticamente todos os edifícios da cidade passam a se enquadrar nos procedimentos simplificados de regularização, exceto nos casos especiais citados na lei.
Elaboração do gráfico: Pedro Henrique Mendonça Rezende
A anistia de 2014 possibilita essencialmente a recuperação de área para o mercado, separada em três regimes de regularização. Na regularização automática, para pequenos edifícios e condomínios residenciais isentos de IPTU, são inseridas no mercado formal casas autoconstruídas em loteamentos, seguindo uma tendência de crescimento e consolidação de mercados imobiliários nas periferias. Esse procedimento dispensa qualquer assistência ou verificação técnica prévia.
Na regularização declaratória, para edifícios de habitação social e de mercado popular promovidos pelo poder público e edifícios residenciais de médio porte (com até 10 metros de altura), pretende-se recuperar os apartamentos HIS e HMP para o mercado de unidades. No último regime, a regularização exige o pagamento de outorga onerosa por área adicional pelo interessado na regularização, o que acaba isentando o construtor do edifício da responsabilidade de pagar pelo direito de construir. Mas, na atual versão do projeto, são apenas os imóveis com mais de 1.500 m² que se enquadram nestes casos.
Por fim, ao usar a isenção de IPTU como linha de corte para dizer o que merece ou não ser analisado pelos técnicos municipais antes da regularização, a Prefeitura assume uma posição na qual o que interessa é a arrecadação. Se não interfere na arrecadação do município, não precisa de amparo técnico para regularização. Aliás, diga-se de passagem, nem para a construção.
Pouco importa que a maior parte da cidade possa ter problemas de infiltração, umidade, estabilidade, ventilação. A aprovação por unanimidade desta (e demais anistias) ilustra bem o quanto a cidade possui duas ordens: uma legal, pensada por e para uma parcela ínfima dos moradores e suas construções; a outra, extra-legal, que alimenta permanentemente uma intermediação política, não para de fato promover ou melhorar sua qualidade, mas para azeitar as engrenagens dos caciques políticos locais. Com a consolidação da infraestrutura básica da cidade, essa intermediação dita o que está dentro e fora do circuito imobiliário, usando o acesso ao valor dos imóveis como capital político. Trata-se de uma nova versão das velhas práticas, tão difíceis, mas tão urgentes de serem superadas.
* Pedro Henrique Rezende Mendonça, pesquisador do LabCidade – Laboratório Espaço Público e Direito à Cidade, um laboratório de pesquisa e extensão da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU) da Universidade de São Paulo (USP).
Sobre a autora
Raquel Rolnik é arquiteta e urbanista, é professora titular da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP. Foi diretora de planejamento da Secretaria Municipal de Planejamento de São Paulo(1989-92), Secretária Nacional de Programas Urbanos do Ministério das Cidades (2003-07) entre outras atividades ligadas ao setor público. De 2008 a 2014 foi relatora especial da ONU para o Direito à Moradia Adequada. Atuou como colunista de urbanismo da Rádio CBN-SP, Band News FM e Rádio Nacional, e do jornal Folha de S.Paulo, mantendo hoje coluna na Rádio USP e em sua página Raquel Rolnik. É autora, entre outros, de “A cidade e a lei: legislação, política urbana e territórios na cidade de São Paulo” (Studio Nobel, 1997), “Guerra dos lugares: a colonização da terra e da moradia na era das finanças (Boitempo, 2016) e “Territórios em Conflito - São Paulo: espaço, história e política” (Editora três estrelas, 2017).