São Paulo negra: a memória da cidade é um espaço em disputa
Raquel Rolnik
20/11/2019 09h46
Em dia de Consciência Negra, a pergunta que não quer calar é: aonde estão os sinais da história negra na cidade de São Paulo? Por que São Paulo insiste em se ver branca, européia, imigrante, chegada nos navios da Europa e do Japão, ocultando seu passado escravo e a presença negra, migrante, dos trens, paus-de-arara de Minas, Bahia, Nordestes?
Sobre o passado que escolhemos contar, dois exemplos são eloquentes. Um é do bairro da Liberdade, lugar de absoluta centralidade para a memória negra, escrava e liberta da cidade, porque próximo dali se situava o pelourinho onde se comerciavam os escravos, a forca onde se celebrava em praça pública a violência e a tortura, e a Capela dos Aflitos, cemitério de pretos e indigentes. Quem passa hoje por ali esbarra nas lanternas japonesas que adornam o bairro. Até mesmo a palavra Liberdade, que dá nome à Praça e Estação do Metrô, foi acrescida a palavra Japão, sinalizando de forma clara uma opção: não vale nem a memória negra, nem mesmo o reconhecimento dos milhares de coreanos e chineses que, em décadas mais recentes, constituem os grupos de imigrantes asiáticos mais numerosos da cidade.
O Bexiga é mais um exemplo : as tradições italianas que, de fato, floresceram na região desde a virada do século 19, conviveram – e convivem – com uma presença negra que, desde o quilombo do Saracura, as casas de fundo aos pés do espigão dos palacetes, afirmaram este lugar como um dos centros da vida social, cultural, religiosa e política da negritude paulistana.
Mas esta história parece o tempo todo ser residual e eclipsada, em parte em função dos deslocamentos constantes que os moradores negros nos bairros centrais sofreram. Uma historia de demolições, remoções, despejos e exílios em COHABs ou bairros pé-no-barro, distantes, que ameaçam sem cessar os não proprietários de suas moradas. Mas em parte também por uma espécie de opção colonizadora, por negar a presença material e espiritual da cultura negra como constituidora de nossa cidade, de nossa urbanidade.
Assim também são invisíveis, como referência e sinalização de centralidade, os lugares de encontro sagrados e profanos, os salões de baile, os terreiros, as quebradas que se sucederam em camadas de construção de cidade: do Parque Peruche à vila Brasilândia, do Jabaquara ao Grajaú, da ZL ao Embu, as Áfricas paulistanas.
Mas dia da Consciência Negra é dia de celebrar: hoje na cidade são dezenas de grupos e coletivos que constroem uma nova cartografia negra: disponibilizando itinerários da experiência negra (iniciativa do Coletivo Crônicas Urbanas), promovendo percursos por pontos de memória (Coletivo Cartografia Negra), retomando histórias como a de Joaquim Pinto de Oliveira (1721- 1811) e sua contribuição para a história da arquitetura (ver Tebas: um negro arquiteto na São Paulo escravocrata), entre muitas outras iniciativas, disputam a memória da cidade, a partir de seus sujeitos.
Sobre a autora
Raquel Rolnik é arquiteta e urbanista, é professora titular da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP. Foi diretora de planejamento da Secretaria Municipal de Planejamento de São Paulo(1989-92), Secretária Nacional de Programas Urbanos do Ministério das Cidades (2003-07) entre outras atividades ligadas ao setor público. De 2008 a 2014 foi relatora especial da ONU para o Direito à Moradia Adequada. Atuou como colunista de urbanismo da Rádio CBN-SP, Band News FM e Rádio Nacional, e do jornal Folha de S.Paulo, mantendo hoje coluna na Rádio USP e em sua página Raquel Rolnik. É autora, entre outros, de “A cidade e a lei: legislação, política urbana e territórios na cidade de São Paulo” (Studio Nobel, 1997), “Guerra dos lugares: a colonização da terra e da moradia na era das finanças (Boitempo, 2016) e “Territórios em Conflito - São Paulo: espaço, história e política” (Editora três estrelas, 2017).