O mapa da desigualdade de São Paulo e as lições que vêm das periferias
Raquel Rolnik
21/11/2019 13h09
Desde pelo menos os anos 1970, especialmente a partir do lançamento do livro São Paulo 1975 – crescimento e pobreza, estudos apontam as diferenças radicais de qualidade de vida que separam pedaços da cidade. Acostumamo-nos ao contraste entre áreas urbanizadas e a precariedade das periferias, favelas e áreas que não contam com equipamentos, urbanidades, infraestruturas – transporte, rede de água e esgoto, creche e escolas, equipamentos de saúde, esportivos e culturais, pavimentação e eletrificação. Estes estudos foram fundamentais para pautar políticas públicas, pensando na redução dessas desigualdades.
Na década seguinte, anos 1990, uma série de outras leituras, os chamados mapas da exclusão, também analisando a cidade de São Paulo, começaram a trabalhar na direção da construção de indicadores concretos que demonstrassem essas diferenças. E, desde que se adotou o distrito como unidade básica para construção de parâmetros demográficos e socioeconômicos, os indicadores por distrito têm sido importantes para comparar cobertura de infraestrutura e equipamentos públicos, além de seus efeitos sobre indicadores na área da saúde, como taxas de mortalidade, entre outras.
Os indicadores revelaram que São Paulo segue sendo uma cidade dividida entre Bélgicas e Haitis, e graças ao debate público que os mapas geraram é que se ordenou pautar políticas municipais e estaduais, programas no âmbito do governo federal, ao longo dos anos 1990 e início dos anos 2000, no sentido da chamada "universalização" – ou seja, extensão destas redes, equipamentos e serviços para toda a cidade.
É nesta direção, e com este sentido, que um Mapa da Desigualdade tem sido elaborado e divulgado anualmente desde 2012 pela Rede Nossa São Paulo. Os dados mais recentes, relativos ao ano de 2018 foram divulgados recentemente. A edição, que analisa 53 indicadores produzidos a partir de dados do setor público nos 96 distritos da capital, trabalha também com um desigualtômetro, que aponta a distância entre o menor e o maior valor de cada indicador.
Infelizmente não é possível estabelecer as séries históricas destes indicadores, uma vez que a cada ano não só entram outros temas, mas também, para alguns temas, mudam os indicadores disponíveis pela prefeitura. Isto permitiria, por exemplo, avaliar, para cada indicador, o quanto caminhamos ou não desde que o mapa começou a ser produzido.
Não há dúvidas que leituras comparativas dos indicadores de bairros centrais em relação à periferias continuam apontando para carências, como por exemplo de empregos formais. Ou para diferenças gritantes como é o caso da idade média ao morrer, que em Moema é de 80 anos, enquanto de Cidade Tiradentes é 57. Mas como interpretar, por exemplo, os indicadores de mortes no trânsito, de poluição atmosférica, de incidência de doenças respiratórias ou atropelamentos, todos com valores muito mais altos nos chamados distritos centrais?
A leitura das desigualdades, nos parece , precisa ser complexificada. É importante superar a leitura das diferenças como carências, como se a missão da redução de desigualdades implicasse necessariamente em transformar a totalidade da cidade no modelo de cidade de seu centro. Por exemplo, o índice de área verde de um bairro como Parelheiros é muito maior do que qualquer outro da cidade e seu destino inexorável não deveria ser necessariamente transformar todas suas áreas rurais, de matas ou aldeias indígenas em shoppings e condomínios.
Trocando em miúdos: se, nos anos 1980 e 1990, o grande parâmetro era a ausência, nas periferias, das redes de equipamentos e urbanidades presentes no centro, a mudança que nos parece fundamental agora é que, ao invés de pautar os distritos periféricos como aqueles em que falta, é urgente pensar num projeto de transformação territorial com o qual as periferias contribuam com modelos e formas que dialoguem com as lógicas de produção do espaço das maiorias e que não adotem o modelo hegemônico acriticamente. Isto é fundamental para superarmos os córregos entubados, as vias pavimentadas congestionadas de carros, os espaços públicos raquíticos.
Uma outra leitura do Mapa da Desigualdade pode enfim jogar luz também nos problemas da região central. Eles nos ajudam a pensar em qual é o modelo de cidade que almejamos, nos centros e nas periferias.
Sobre a autora
Raquel Rolnik é arquiteta e urbanista, é professora titular da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP. Foi diretora de planejamento da Secretaria Municipal de Planejamento de São Paulo(1989-92), Secretária Nacional de Programas Urbanos do Ministério das Cidades (2003-07) entre outras atividades ligadas ao setor público. De 2008 a 2014 foi relatora especial da ONU para o Direito à Moradia Adequada. Atuou como colunista de urbanismo da Rádio CBN-SP, Band News FM e Rádio Nacional, e do jornal Folha de S.Paulo, mantendo hoje coluna na Rádio USP e em sua página Raquel Rolnik. É autora, entre outros, de “A cidade e a lei: legislação, política urbana e territórios na cidade de São Paulo” (Studio Nobel, 1997), “Guerra dos lugares: a colonização da terra e da moradia na era das finanças (Boitempo, 2016) e “Territórios em Conflito - São Paulo: espaço, história e política” (Editora três estrelas, 2017).