Governo do Estado de São Paulo privatiza endereçamento ao Google
Raquel Rolnik
13/12/2019 15h19
Pedro Mendonça
Leonardo Foletto
Raquel Rolnik
Débora Ungaretti
Em 11 de dezembro, o Governo do Estado de São Paulo anunciou um projeto em parceria com o Google para adotar o Plus Code – um código de endereçamento criado pela empresa estadunidense – como endereço oficial de cerca de 2 milhões de pessoas em áreas rurais. O serviço é direcionado para aqueles endereços que não estão mapeados em serviços web, como no Waze ou o Google Maps. Ainda que aparentemente, trate-se de aumentar o acesso a serviços digitais, o projeto na verdade combina uma estratégia de expansão do alcance territorial do Google com a privatização do endereçamento por parte do Estado.
Na nota oficial sobre a parceria, o governo anuncia que o esforço faz parte de um programa de mapeamento de 60 mil quilômetros de estradas rurais, com 340 mil propriedades não cadastradas. A ideia é individualizar o registro de casas com a tecnologia Plus Code e, com isso, promover a inclusão das propriedades nos mapas digitais. Para isso, segundo a Folha de S. Paulo, também será empregado um software do Instituto de Economia Agrícola para sobrepor diversos cadastros rurais. Com o cadastramento, o governo afirma que as famílias passariam a ter acesso a serviços de Saúde e Segurança.
A falta de endereço atinge tanto áreas rurais quanto urbanas. Famílias sem endereço cadastrado têm problemas para acessar serviços que demandam cadastramento ou correspondência postal. Por isso, o endereçamento é uma função importante do Estado na direção de conferir status oficial a moradias e estabelecimentos e, assim, ampliar o acesso a direitos e serviços diversos. Mas diferentemente do que os anúncios oficiais deixam parecer, a ferramenta da Google não serve para resolver esse problema, e por isso é difícil imaginar que a adoção do Plus Code tenha partido de uma demanda ou necessidade local.
A Google é a maior provedora de serviços de localização na internet. Várias empresas utilizam o Google Maps para dizer a seus clientes onde estão; várias prefeituras utilizam os padrões de arquivo da Google para criar os serviços de consulta de rotas de transporte público; empresas de entrega e aplicativos como Uber, Ifood, Rappi e 99 utilizam o Google Maps em seus serviços.
Nem todos os lugares no planeta têm um endereço oficial, mas graças à cartografia moderna todos podem ser localizados por uma coordenada. Os mapas digitais não operam com endereços, mas com latitude e longitude, pois adotam a tecnologia GPS. Nesse sentido, os endereços legíveis para humanos – nome da rua, número, bairro, cidade – são na realidade um empecilho, pois para que possam ser usadas por diversas aplicações digitais precisam ser convertidos em pares de coordenadas num processo chamado geocodificação. Este é justamente um dos serviços oferecidos pela Google em seu Google Maps API.
Para cada endereço transformado em coordenada, a Google cobra 0,005 dólares – caso o usuário ultrapasse uma cota inicial de 200 dólares, disponibilizada gratuitamente por usuário todo mês. A Google também cobra de serviços de geolocalização (o serviço contrário, ou seja: transformar coordenada em endereço) e de desenho de rotas solicitados ao seu servidor. O serviço da empresa é o mais preciso disponível no mercado, mas para funcionar necessita que funcionários, órgãos da administração e usuários voluntários atualizem e aperfeiçoem a base cartográfica da empresa.
O Plus Code, também conhecido por Open Location Code, é uma tecnologia que busca resolver esse problema – para a Google. Por dispensar a existência de um endereço por extenso, o Plus Code permitiria, por exemplo, enviar uma encomenda para uma ilha deserta no meio do oceano. Isso porque não se trata de um endereço, e sim de coordenadas geográficas com um verniz de código. O script da tecnologia divide a Terra em vários níveis de quadrículas, com precisão de até três metros, e gera um código de "arredondamento" da latitude e longitude – o próprio Plus Code. O script é bastante simples e poderia ter sido criado por qualquer pessoa com algum conhecimento de cartografia e de alguma linguagem de programação – inclusive as equipes técnicas do Estado. Mas como o código é de autoria da Google, existem outras variáveis em jogo. Afinal, qual o interesse da empresa em transformar os endereços do mundo em plus codes?
Se todos os endereços do mundo fossem trocados ou vinculados ao código, não haveria mais necessidade de transformar os endereços em coordenadas, pois a correspondência seria direta. Assim, o endereço por extenso passaria a ser um código obsoleto na web. É aí que entra o Governo do Estado de São Paulo no cadastramento dos imóveis rurais. O Estado poderia proceder como sempre fez, dando apenas um nome à rua e um número aos imóveis, mas opta por incluir o código da empresa – liberando-a, assim, de ter que atualizar os endereços por extenso em seus serviços para manter sua precisão. Não há ganho de eficiência, pois para obter o plus code o Estado precisa especificar as coordenadas dos imóveis, e para isso precisa de informação com detalhe suficiente para executar os procedimentos convencionais. A parceria é por camaradagem, não por necessidade, e a maior vantagem fica mesmo com a empresa.
O script de conversão do Plus Code é de código aberto e gratuito, pode ser baixado e utilizado por qualquer pessoa ou empresa. Neste caso, o livre acesso pode dar uma conotação falsa de simetria e ganha-ganha. Isso porque a Google domina a oferta de serviços, e, portanto, tem poder para forçar o uso de seu plus code por outras plataformas. Assim, o código aberto visa ampliar a adoção do script da empresa por outros serviços, aumentando seu alcance e difusão. Os ganhos não são monetários, mas sim de imagem: com a disseminação do script e adoção do código como endereço oficial, plataformas de mapeamento colaborativo, por exemplo, devem passar a incluir os plus codes em suas bases para mantê-las atualizadas.
O efeito imediato da criação do Plus Code é que ele tem abrangência global, pois todos os lugares da Terra podem ser representados por coordenadas e, assim, também pelos códigos da Google. Ou seja: não existe nenhum esforço adicional da empresa para atribuir os códigos aos imóveis rurais. O trabalho é todo do Estado, que passa a incluir o código nos cadastros oficiais de propriedade. Numa declaração dúbia, o diretor de parcerias da Google na América Latina, Newton Neto, afirmou à Folha de São Paulo que "cabe ao proprietário rural tomar a decisão de compartilhar esse Plus Code com o governo ou empresas", mesmo que o código seja inescapável – pois será o endereço das pessoas.
A escolha da parceira pelo Estado reproduz uma prática de favoritismo muito familiar em governos mundo afora: em troca de um serviço apresentado como "inovador" ou disruptivo fornecido pela Google, mas também pelo Facebook, Amazon ou outras "Big Techs", aprofunda-se uma relação de dependência tecnológica, reforçando assim o poder de poucas empresas (ou uma só) sobre dados e informações que dizem respeito a todos. Estamos diante de uma privatização que sequer passou por qualquer concorrência, como ocorre em outros serviços ligados aos governos. É uma "reversão" de banco de dados à tecnologia de uma empresa privada, que ainda por cima tem seus gastos reduzidos com a atualização de seus próprios serviços. Divulgada como gratuita pelo Governo, a operação adota uma tecnologia privada para executar um serviço público, o de fornecimento de endereços e coordenadas, sem consultar a população ou outras empresas e iniciativas que têm serviços de mapeamentos semelhantes, caso da Open Street Maps.
Como sinaliza a nota oficial, esse é apenas o começo: o governo tem intenção de expandir o uso do código em comunidades urbanas nos próximos meses. No chão da cidade, muitas comunidades não cadastradas já possuem nomes em suas ruas e vielas, atribuídos pelos próprios moradores. Os cadastramentos realizados por prefeituras por vezes substituem essas toponímias por sequências numéricas, mas a adoção de coordenadas geográficas – com pirotecnia tecnológica – como endereço inauguraria uma nova prática, com linguagem militarizada e abstrata, longe dos processos de formação e ativação de memórias coletivas que compõem os nomes, negando mais uma vez a urbanidade a esses bairros. Afinal, ninguém mora num par de coordenadas.
Sobre a autora
Raquel Rolnik é arquiteta e urbanista, é professora titular da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP. Foi diretora de planejamento da Secretaria Municipal de Planejamento de São Paulo(1989-92), Secretária Nacional de Programas Urbanos do Ministério das Cidades (2003-07) entre outras atividades ligadas ao setor público. De 2008 a 2014 foi relatora especial da ONU para o Direito à Moradia Adequada. Atuou como colunista de urbanismo da Rádio CBN-SP, Band News FM e Rádio Nacional, e do jornal Folha de S.Paulo, mantendo hoje coluna na Rádio USP e em sua página Raquel Rolnik. É autora, entre outros, de “A cidade e a lei: legislação, política urbana e territórios na cidade de São Paulo” (Studio Nobel, 1997), “Guerra dos lugares: a colonização da terra e da moradia na era das finanças (Boitempo, 2016) e “Territórios em Conflito - São Paulo: espaço, história e política” (Editora três estrelas, 2017).