Imprecisa no mapa oficial, periferia se movimenta no combate à Covid-19
Raquel Rolnik
27/04/2020 10h54
por Raquel Rolnik, Aluízio Marino e Gisele Brito*
Os mapas oficiais que têm mostrado a expansão da Covid-19 pela cidade de São Paulo são imprecisos. Ao mesmo tempo em que há evidências de subnotificação em função da falta de testes, a prefeitura não tem divulgado de forma aberta e satisfatória as informações relativas a óbitos e ocupação de leitos nas cidades. Essa invisibilidade é ainda maior nas regiões periféricas, o que acaba por não nos permitir acompanhar o impacto da epidemia nas vilas, conjuntos e favelas que predominam à medida que nos afastamos dos bairros centrais, nem muito menos avaliar de forma mais precisa o impacto de medidas como o isolamento social.
A imprecisão na coleta e registro de dados na medida em que nos afastamos em direção às periferias não é nenhuma novidade. Exemplo flagrante é como as categorias do uso e ocupação do solo nos planos diretores e zoneamento é definida de forma milimétrica nas áreas de maior renda e como é genérica e pouco detalhada quando se trata de identificar as formas de morar e organizar a cidade nos territórios populares.
Até o momento, foram divulgados pela Secretaria Municipal da Saúde dois boletins epidemiológicos com informações territorializadas sobre a pandemia. O primeiro boletim abarca o período de 26 de fevereiro a 31 de março, com registro dos casos e óbitos por hospitais; já o segundo boletim abarca o período de 9 a 17 de abril e apresenta essas informações por distritos. Nenhum dos dois revela informações territorializadas sobre a ocupação de leitos.
Além de uma lacuna temporal entre os dois boletins — não temos informações relativas ao período de 1 a 8 de abril —, os documentos apresentam as informações de forma diferente, que dificulta a possibilidade de uma análise comparativa. Outra questão é que os dados que compõe os boletins não estão abertos, dificultando o trabalho de pesquisadores e a visualização por parte de toda sociedade.
Mesmo com a subnotificação e a falta de dados sólidos, é absolutamente claro nos mapas divulgados no último boletim epidemiológico, a difusão da doença a partir dos bairros centrais, e distritos que predominam uma população de classe média em direção às bordas da metrópole.
O coronavírus avança sobre áreas marcadas pela presença de assentamentos precários, muito densas, com pouquíssimas condições de isolamento, e, frequentemente afetadas por condições precárias de saneamento ambiental, como já levantamos em textos anteriores. A penetração da doença nessas áreas, reafirma a necessidade de políticas públicas específicas, que propiciem condições para que as pessoas possam se isolar — já que para a maioria da população se isolar não se trata apenas de uma escolha individual.
A luta por essas ações no âmbito das políticas públicas já tem ocorrido por meio de petições eletrônicas e manifestos, além de ações na justiça. Entretanto, práticas de autogestão protagonizadas por coletivos autônomos e organizações da sociedade civil têm mobilizado e implantado ações diretas de proteção à vida nestes territórios.
Dentre as proposições de políticas públicas, destacamos:
- A proposta de disponibilização de uma alternativa habitacional provisória para desadensar locais muito povoados, como proposto pela campanha quartos da quarentena;
- Uma estratégia de testagem orientada por um bom trabalho de mapeamento das situações de cada região da cidade;
- Ampliação e fortalecimento do programa saúde da família do SUS, com acompanhamento de perto feito pelas equipes de agentes comunitários de saúde.
Apenas uma combinação de estratégias territorializadas permite que sejam dadas respostas adequadas a cada contexto. No entanto, do ponto de vista governamental, essa estratégia ainda patina. Por outro lado, a sociedade civil organizada, especialmente nessas áreas marcadas por precariedades habitacionais e urbanísticas que dificultam as medidas de isolamento social e profilaxia, está fazendo uma enorme diferença.
Iniciativas autogestionadas movimentam a periferia
Pela própria natureza desses lugares, falamos de grupos sociais inscritos em territórios que têm de lutar cotidianamente , dentro de uma enorme escassez de recursos, para poder sobreviver. É a partir desta experiência cotidiana que moradores dessas comunidades conseguem estruturar um modo de gestão da pandemia, que governos não conseguem fazer.
Várias são as iniciativas deste tipo, que tem montado redes de solidariedade e de atenção à saúde. Um exemplo disso é o trabalho da Frente de Luta por Moradia, da União de Movimentos de Moradia e do Movimento de Trabalhadores sem Teto que montaram comitês de solidariedade para viabilizar apoio e proteção às famílias que vivem em ocupações de moradia, em favelas e conjuntos construídos sob a forma de autogestão e mutirão.
Da mesma forma, a Uneafro, o Movimento Cultural das Periferias, a Rede de Apoio Humanitário das e nas Periferias., e a Rede Ubuntu vem desenvolvendo e viabilizando ações em favelas e periferias, ação presente também na Rede Oeste contra a COVID-19. Outro exemplo é a articulação entre coletivos e instituições que estão desenvolvendo ações de proteção e esclarecimento voltadas aos usuários do fluxo da Cracolândia, tal como a instalação de pias móveis e a intervenção com lambes informativos.
Lambes com dicas de prevenção e com um mapa dos serviços que oferecem alimentação no centro da cidade de São Paulo (conhecidos pelo povo de rua como "bocas de rango", colados no entorno do fluxo da Cracolândia | Foto: Pedro Santi
Poderíamos citar muitas outras iniciativas autogestionadas que dão respostas às necessidades específicas de cada local, principalmente por conhecerem profundamente cada local, cada família, cada quebrada, cada necessidade e portanto entenderem o que são as necessidades prioritárias. Elas têm uma capacidade muito importante de capilarização e de leitura de realidade, captando aspectos invisíveis, ou simplesmente ignorados pelo poder público Elas demonstram a importância da autogestão e da participação direta dos sujeitos na definição das estratégias e formas de ação das políticas públicas.
Está mais do que claro que políticas homogêneas, baseadas em ofertas pré-definidas de cima para baixo, com total desconhecimento do território e sem interlocução com os sujeitos que habitam tendem a fracassar. Já vimos este filme inúmeras vezes. O que a pandemia e a auto-organização nos territórios durante a pandemia nos ensina é que há outro caminho possível: as políticas públicas podem e devem aprender para combater a pandemia, mas sobretudo para a gestão governamental pós-pandemia.
*Professora da FAU-USP, coordenadora do LabCidade; Doutorando na UFABC, pesquisador do Labcidade; Mestranda na FAU-USP, pesquisadora do LabCidade.
Sobre a autora
Raquel Rolnik é arquiteta e urbanista, é professora titular da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP. Foi diretora de planejamento da Secretaria Municipal de Planejamento de São Paulo(1989-92), Secretária Nacional de Programas Urbanos do Ministério das Cidades (2003-07) entre outras atividades ligadas ao setor público. De 2008 a 2014 foi relatora especial da ONU para o Direito à Moradia Adequada. Atuou como colunista de urbanismo da Rádio CBN-SP, Band News FM e Rádio Nacional, e do jornal Folha de S.Paulo, mantendo hoje coluna na Rádio USP e em sua página Raquel Rolnik. É autora, entre outros, de “A cidade e a lei: legislação, política urbana e territórios na cidade de São Paulo” (Studio Nobel, 1997), “Guerra dos lugares: a colonização da terra e da moradia na era das finanças (Boitempo, 2016) e “Territórios em Conflito - São Paulo: espaço, história e política” (Editora três estrelas, 2017).