Como a densidade das cidades se relaciona com a difusão da pandemia?
Raquel Rolnik
25/06/2020 19h47
Foto: Alexandre Schneider | Getty Images
Desde o início da pandemia, uma questão ronda o debate urbanístico sobre a relação das formas de organização dos espaço das cidades e a disseminação do covid-19: estaria a tão propalada diretriz de promover "cidades compactas através de políticas de adensamento" agora condenada ao fracasso?
Tive a oportunidade de participar esta semana de dois fóruns internacionais que abordaram o tema o seminário do Urban Design Forum, e uma reunião de urbanistas promovida pela UN-Habitat (Agência das Nações Unidas para os Assentamentos Humanos) para subsidiar o documento da instituição sobre cidades e covid-19. Nas duas reuniões, o que ficou claro, pelo menos para mim, é que a palavra de ordem das cidades compactas (relacionadas diretamente a renovação urbanística das cidades com prédios altos e usos mistos) merece sim uma revisão profunda, mas não por que prédios altos foram o foco de contaminação por coronavírus, mas sim por que, na prática essa política representou — em muitos dos casos apresentados nos seminários — uma verdadeira expulsão dos moradores e atividades de menor renda para periferias e situações de overcrowding, ou de super adensamento das casas e apartamentos.
Para entender este debate — em suas sutilezas, mas também a partir não de seus modelos teóricos mas das intervenções reais e seus impactos , vou me referir ao excelente trabalho que a ANHD (Association for Neighborhood and Housing Development) realizou para examinar o impacto territorial da epidemia na cidade, apresentado no seminário de Urban Design por Barika Williams, com quem dividi o debate, secretaria executiva da instituição. Primeiro: existem dois tipos de densidade no urbanismo. Uma é construtiva, caracterizada pela relação entre área construída e área do terreno. Ela será maior quanto mais metros de área construída forem implantados nos terrenos.assim áreas de concentra prédios altos tendem a ter densidades construtivas maiores. Outra é demográfica, isto é, a medida de quantas pessoas temos por unidade de espaço (metros quadrados ou hectares). Neste caso, independente da forma da construção, densidades demográficas maiores correspondem a áreas com mais gente dentro de um mesmo espaço. As duas coisas não necessariamente coincidem. Essa é a questão.
No caso de Nova Iorque, por exemplo, ficou muito claro que as áreas ali mais centrais de Manhattan, lotadas de arranha-céus,inclusive residenciais. onde há uma altíssima densidade construtiva, não é um lugar onde ocorreu uma maior concentração de gente infectada pelo coronavírus. Pelo contrário, as leituras apontam claramente que a doença se disseminou mais nos bairros periféricos, muito marcados pelo overcrowding. Quer dizer, pelo chamado adensamento domiciliar ou em outras palavras, muita gente morando junto no mesmo apartamento.
Sendo assim, aparentemente há uma correlação muito maior de incidência da pandemia com adensamento domiciliar, do que propriamente com a densidade construtiva. Porém não é possível tirar esta conclusão sem levar em consideração outros fatores fundamentais levantados pelo estudo da ANHD. Em Nova Iorque, esses bairros caracterizados por residências mais lotadas concentram a maior parte da base dos trabalhadores de saúde — os mais expostos a covid-19. Também são os bairros que têm a menor renda, o maior número de imigrantes, inclusive não documentados, que têm menos acesso às redes de proteção e saúde pública, e ao atendimento estatal em geral.
No caso de Nova Iorque o que fica claro é que todos os bairros que passaram por um processo de adensamento construtivo — uma política expressa da cidade nos últimos anos — não garantiram maiores oportunidades de acesso à moradia aos seus moradores, pelo contrário.. Longe disso, nós estamos falando de um mercado imobiliário residencial muito financeirizado, muito globalizado, com muita presença de plataformas do tipo AirBnB, ou seja, muita nova área construída residencial, muita valorização imobiliária e alta dos aluguéis, e desadensamento real nesta cidade compacta! que por sua vez também se relaciona ao overcrowding de cartas áreas da cidade, agravado, ainda pela incidência de segregação racial na conformação da cidade.
Então, todo cuidado é necessário quando se fala de promoção da cidade compacta, do adensamento , para que mais gente possa usufruir da cidade. É preciso ter muita cautela com o quê se está defendendo. Em tempos de pensar a cidade pós-coronavírus, é importante também reavaliar os modelos que tem sido hegemônicos na política urbana.
Sobre a autora
Raquel Rolnik é arquiteta e urbanista, é professora titular da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP. Foi diretora de planejamento da Secretaria Municipal de Planejamento de São Paulo(1989-92), Secretária Nacional de Programas Urbanos do Ministério das Cidades (2003-07) entre outras atividades ligadas ao setor público. De 2008 a 2014 foi relatora especial da ONU para o Direito à Moradia Adequada. Atuou como colunista de urbanismo da Rádio CBN-SP, Band News FM e Rádio Nacional, e do jornal Folha de S.Paulo, mantendo hoje coluna na Rádio USP e em sua página Raquel Rolnik. É autora, entre outros, de “A cidade e a lei: legislação, política urbana e territórios na cidade de São Paulo” (Studio Nobel, 1997), “Guerra dos lugares: a colonização da terra e da moradia na era das finanças (Boitempo, 2016) e “Territórios em Conflito - São Paulo: espaço, história e política” (Editora três estrelas, 2017).