Orçamento participativo da cidade de São Paulo amplia a democracia?
Raquel Rolnik
23/07/2020 11h21
Orçamento Participativo da Região Grande Cruzeiro, gestão do prefeito Tarso Genro (PT) (Porto Alegre-RS, 14 jun. 1993). / Vivi Capellari/Gabinete de Impresa da Prefeitura de Porto Alegre
Hoje é o último dia para os paulistanos votarem as propostas populares que integrarão o Projeto de Lei Orçamentária Anual (PLOA) de 2021. Ou seja, através de uma consulta online, os moradores da cidade podem propor prioridades de investimento da prefeitura para o próximo ano.
Quem for participar do processo de votação estará indicando 5 de um total de 475 propostas (são 15 por Subprefeitura), que foram fruto de um processo de seleção pelos Conselhos Participativos das Subprefeituras a partir das 3519 pautas iniciais coletadas em audiências públicas, realizadas em maio. Este ano, em função da pandemia, todo o processo ocorreu por meios digitais.
A metodologia adotada em São Paulo para colher a opinião direta dos cidadãos antes de submeter a proposta orçamentária para a Câmara Municipal, onde esta é aprovada, é uma das centenas de processos e métodos que hoje estão sendo adotados por cidades brasileiras, mas também em municípios de todos os continentes. A idéia de participação direta do cidadãos nas decisões sobre o futuro de suas cidades nasceu no âmbito de movimentos sociais, a partir da crítica da falta de representatividade do sistema político e da necessidade de incorporação de novas formas de tomada de decisão pública, em um movimento pela radicalização da democracia.
No Brasil, esse processo começa a se ensaiar na década de 70, no seio de movimentos mais gerais pelo fim da ditadura e restabelecimento da democracia. Os movimentos populares — que acabaram convergindo para uma grande plenária pró-participação popular durante o processo constituinte, que arrematou mais de 12 milhões de assinaturas em uma emenda apresentada ao Congresso — lograram inserir vários artigos na Constituição, tornando obrigatória a "cooperação das associações representativas no planejamento municipal" como princípio na elaboração de suas leis orgânicas (Artigo 29, Inciso XII). A Carta Magna estabeleceu o direito ao exercício direto da cidadania como um dos pressupostos do Estado Brasileiro.
As primeiras experiências de institucionalização dos mecanismos de consulta, e particularmente do orçamento, ocorreram nas chamadas "administrações democrático-populares" eleitas nos anos 1990, a partir da experiência de Porto Alegre, em 1989, na gestão Olívio Dutra. Porto Alegre não foi a primeira experiência de consultas públicas e construção de espaços participativos, mas foi a primeira que criou metodologias e sistemáticas institucionalizadas no interior do ciclo orçamentário municipal. A partir daí, o OP foi ganhando cada vez mais institucionalização no país, com centenas de municípios adotando o mecanismo — 351 prefeituras em 2012, segundo levantamento da Rede Brasileira de Orçamento Participativo.
No entanto, apesar da inegável existência de formas de participação popular (em parte das cidades brasileiras) nas decisões de como os recursos públicos serão alocados, o que há no Brasil hoje, em termos de democracia direta, é algo muito diferente da ideia inicial que se tentou construir no final do último século. Os desejos originais, formulados nos anos 1980, de um processo autônomo, independente da estrutura do Estado e do sistema político, na verdade foram sendo progressivamente incorporados e atravessados pela estrutura do Estado e dos partidos.
Cidadãos estão de fato interferindo na definição das prioridades de seus governos de forma autônoma, de fato ampliando o alcance da democracia representativa? Por um lado, parte importante da representação da chamada sociedade civil nos conselhos e nos espaços participativos orbita em torno dos mandatos parlamentares e estruturas partidárias, e, por outro, mecanismos fortes de bloqueio de potência deliberativa foram sendo incorporados pelos próprios governos, garantindo seu controle sobre o processo.
Mas então isso significa que este processo não contempla genuinamente as propostas da população? Também não. Tomando como exemplo o modelo de consulta adotado em São Paulo, metodologia que já vem sendo desenvolvida há várias gestões, podemos afirmar que de fato a consulta se realiza — de forma presencial e online —, envolvendo 5000 pessoas (média dos últimos anos) que se dispõem a apontar prioridades, que depois de vários filtros podem ou não serem incorporadas à proposta final, que mesmo votada, pode ou não ser implementada. A ambiguidade deste processo mostra que, embora existam mecanismos de escuta e transparência, estes são completamente marginais ou secundários em relação aos processos de tomada de decisão.
O que podemos aprender desta trajetória para os desafios colocados hoje? Não há dúvida de que o sentimento de frustração em relação ao nosso modelo político eleitoral, e, especialmente, aos métodos de deliberação adotados pelo estado brasileiro para definir prioridades de investimento e gestão, é hoje talvez ainda maior do que o daqueles que alimentaram a utopia de democracia direta nos anos 1970. Esta frustração é atualmente capturada por um movimento antidemocracia, solapando o que foi sendo construído de mecanismos de participação popular direta. Portanto, há que se combater a destruição da democracia sim, mas há também que se submeter a trajetória institucionalizada de participação popular a uma ampla revisão.
Sobre a autora
Raquel Rolnik é arquiteta e urbanista, é professora titular da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP. Foi diretora de planejamento da Secretaria Municipal de Planejamento de São Paulo(1989-92), Secretária Nacional de Programas Urbanos do Ministério das Cidades (2003-07) entre outras atividades ligadas ao setor público. De 2008 a 2014 foi relatora especial da ONU para o Direito à Moradia Adequada. Atuou como colunista de urbanismo da Rádio CBN-SP, Band News FM e Rádio Nacional, e do jornal Folha de S.Paulo, mantendo hoje coluna na Rádio USP e em sua página Raquel Rolnik. É autora, entre outros, de “A cidade e a lei: legislação, política urbana e territórios na cidade de São Paulo” (Studio Nobel, 1997), “Guerra dos lugares: a colonização da terra e da moradia na era das finanças (Boitempo, 2016) e “Territórios em Conflito - São Paulo: espaço, história e política” (Editora três estrelas, 2017).