Inquilinos, enfim, protegidos durante a pandemia no Brasil
Raquel Rolnik
21/08/2020 19h42
"Comida sim, aluguel não! Junte-se à União dos Inquilinos de Los Angeles", protesto em 30 de abril de 2020 – Foto: Timo Saarelma/L.A. Tenants Union
Por Raquel Rolnik e Pedro Mendonça
O Congresso acaba de derrubar o veto presidencial ao Artigo 9º da Lei 14010/20, que suspende os despejos de inquilinos até o dia 30 de outubro de 2020, em função da pandemia. Com o artigo agora reincluído na lei, ficam proibidas as concessões de liminares para despejo de inquilinos por falta de pagamento de aluguel, as desocupações pactuadas entre locador e locatário para este período não precisam mais ser cumpridas, e fica também proibida a demissão do locatário em contrato de aluguel vinculado ao emprego. A lei abrange todas as ações ajuizadas até 20 de março deste ano, data em que foi decretado o estado de calamidade pública no Brasil.
Medidas de proteção aos inquilinos durante a pandemia foram adotadas por vários países — Espanha, Estados Unidas, Portugal, Canadá, Alemanha, República Democrática do Congo, Argentina, Colômbia, Hungria e África do Sul são alguns exemplos — para evitar que as pessoas ficassem impossibilitadas de ter um lugar para morar em períodos de necessidade de isolamento social.
De acordo com os dados do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, inicialmente, nos meses de março e abril, houve uma diminuição de sentenças em processos de despejo em São Paulo e cidades vizinhas. Entretanto, as sentenças favoráveis ao senhorio, que geralmente implicam na saída do imóvel, correspondem em média a 80% do total, conforme cálculo realizado pelo LabCidade a partir de dados do Banco de Sentenças em 1º Grau do Tribunal de Justiça de São Paulo (gráfico 1). Esta proporção mudou muito pouco durante os meses de pandemia. Além disso, verificamos uma retomada das sentenças e ordens de despejo a partir do final de maio de 2020, atingindo o maior valor desde novembro de 2019 (gráfico 2).
A derrubada do veto é, portanto, positiva e crucial. Vai na direção de medidas essenciais de proteção à vida. Mas, infelizmente, a legislação aprovada não basta. Isso porque os inquilinos formalizados não são o único grupo sujeito a perder sua moradia em meio à crise sanitária. Existe um enorme contingente — não quantificado em lugar algum — de aluguéis pactuados em mercado informal que também precisam ser contemplados em medidas de proteção. Deve se considerar ainda nas políticas públicas de saúde os moradores do país que vivem em ocupações, sofrendo ameaças de remoção a qualquer momento por reintegrações de posse, projetos de obras públicas, entre outros. Neste momento, enquanto durar a pandemia, ninguém pode ser privado de um lugar onde morar.
Existem vários projetos de lei a este respeito tramitando no Congresso desde o início da pandemia. Como o PL 692/20, que propõe que se suspenda por tempo indeterminado o cumprimento de mandados de reintegração de posse, despejos e remoções judiciais ou extrajudiciais, tanto na área urbana quanto rural, em caso de pandemia reconhecida pela Organização Mundial da Saúde (OMS).
No âmbito da cidade de São Paulo, a Promotoria de Justiça de Habitação e Urbanismo informou hoje que o município manifestou concordância com os termos da recomendação que o Ministério Público havia encaminhado, em julho, para que fossem suspensas as remoções durante a pandemia. Porém, a Prefeitura continua afirmando que "providências daquela natureza apenas serão tomadas pela Prefeitura enquanto perdurarem as restrições de distanciamento social em decorrência da pandemia, nas situações de comprovado risco alto ou muito alto, ou mediante análise individualizada e criteriosa de cada caso concreto, nos casos de ocupações recentes, ocupações em áreas de proteção ambiental e em áreas destinadas à realização de obras públicas ou implementação de equipamentos públicos". Estas são exatamente as situações mais correntes nas quais a Prefeitura realiza remoções. Portanto, é importante que a análise criteriosa desta Prefeitura considere que, situações de calamidade, especialmente uma crise sanitária que implica em perigo concreto de morte, exigem priorizações que coloquem a vida em primeiro lugar. Por isso, em São Paulo e em todo Brasil, temos que avançar na legislação de proteção, urgente e necessária.
Sobre a autora
Raquel Rolnik é arquiteta e urbanista, é professora titular da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP. Foi diretora de planejamento da Secretaria Municipal de Planejamento de São Paulo(1989-92), Secretária Nacional de Programas Urbanos do Ministério das Cidades (2003-07) entre outras atividades ligadas ao setor público. De 2008 a 2014 foi relatora especial da ONU para o Direito à Moradia Adequada. Atuou como colunista de urbanismo da Rádio CBN-SP, Band News FM e Rádio Nacional, e do jornal Folha de S.Paulo, mantendo hoje coluna na Rádio USP e em sua página Raquel Rolnik. É autora, entre outros, de “A cidade e a lei: legislação, política urbana e territórios na cidade de São Paulo” (Studio Nobel, 1997), “Guerra dos lugares: a colonização da terra e da moradia na era das finanças (Boitempo, 2016) e “Territórios em Conflito - São Paulo: espaço, história e política” (Editora três estrelas, 2017).