No ano em que o coronavírus reinou, o transporte coletivo naufragou
Raquel Rolnik
17/12/2020 12h49
Foto: Yan Marcelo
Fim de 2020 chegando, hora de balanço. É quase impossível não falar sobre a pandemia, o assunto que dominou o ano e impactou a vida de tanta gente. E esse impacto foi global, mas, como todos os fenômenos globais, a forma como a pandemia foi enfrentada escancarou as diferenças: entre países, cidades, bairros e segmentos populacionais. Podemos fazer esta leitura a partir de muitos pontos de vista, mas escolho aqui o tema do transporte coletivo, uma área vital no cotidiano da cidade, mas que durante a crise político-sanitária ganhou ainda maior importância e também passou por crise, não devidamente debatida e muito menos enfrentada pelos governos, ainda que se trate de um serviço público de primeira necessidade. O conforto no transporte público é uma questão antiga e urgente, que diz respeito à saúde e qualidade de vida das pessoas. Durante uma pandemia esta eficiência do transporte se torna absolutamente central também para a preservação da vida.
A verdade é que, em um momento em que o distanciamento de outros seres humanos foi (e ainda é) imperativo para a saúde pública, e milhões de brasileiros não têm a opção de parar de trabalhar se deslocando por transporte público, as alternativas que foram implementadas neste campo, majoritariamente focadas na necessidade de manutenção do equilíbrio financeiro dos contratos com as concessionárias privadas que prestam este serviço em nossas cidades não só não garantiram as condições seguras para este deslocamento, mas muitas vezes até pioraram a situação. Dentre estas a redução na frota de ônibus em plena pandemia, sem relação direta com as necessidades reais de deslocamento da população (que é heterogênea na cidade), que aumentou a aglomeração dentro dos veículos.
Neste ano, um estudo do LabCidade mostrou que existe uma forte relação entre a circulação para trabalho por meio do transporte público e o contágio pelo coronavírus, provavelmente decorrente da alta densidade e tempo largo dentro destes veículos. No final de junho, publicamos um mapa que cruza locais de origem das viagens diárias por transporte público (a partir de uma distribuição que considera número de viagens nas zonas origem-destino e distribuição populacional dentro dessas zonas) com áreas de concentração das residências de pessoas hospitalizadas com Covid-19 e Síndrome Respiratória Grave (SRAG) sem identificação. O estudo também foi publicado pela Agência Fapesp.
Mapa: Pedro Mendonça/ LabCidade
Todos os dados disponíveis para as viagens por transporte coletivo mostram uma queda do número total de passageiros, desde o início da pandemia. Números da ANPTrilhos (Associação Nacional dos Transportadores de Passageiros sobre Trilhos) divulgados em matéria da Folha de S.Paulo mostram que existem locais onde a demanda por trens urbanos, metrôs e VLTs (Veículos Leves sobre Trilhos) caiu para menos da metade dos valores de março, quando começaram as restrições sanitárias a fim de conter a disseminação do coronavírus. Temos como exemplo Minas Gerais e Rio de Janeiro, que transportaram na primeira quinzena de novembro 44% e 47% do total de passageiros que transportavam antes da pandemia. A ANPTrilhos ainda divulgou à matéria dados da demanda no Rio Grande do Sul (51%), São Paulo (52%) e Distrito Federal (54%) como exemplos em crise. E nem os melhores cenários são bons o suficiente para escapar dos super prejuízos: Bahia, com 60%, e Pernambuco, com 72%. Veja abaixo uma linha do tempo da demanda por ônibus na cidade de São Paulo:
Gráfico: UOL. Veja ampliado.
Mas não comemore esses números: além dos prejuízos acumulados de R$ 7,18 bilhões até outubro (dados divulgados pela BBC Brasil), que ainda não foram equacionados e ameaçam incidir em tarifaços (em plena pandemia!), infelizmente uma queda na demanda pelo transporte — sob esse nosso modelo de remuneração das empresas — não significa queda na lotação dentro dos veículos. Na verdade, como as empresas diminuem a frota a fim de manter sua rentabilidade, os brasileiros continuam viajando diariamente em ônibus lotadíssimos, Isso acontece porque todo o nosso modelo de mobilidade urbana está baseado na remuneração das empresas concessionárias por tarifa de cada passageiro. Discuti aqui como este modelo é absolutamente falho e como poderíamos ter um transporte de qualidade muito superior caso remunerássemos as empresas por quilômetro rodado, o que as estimularia a ampliar a frota invés de diminuí-la (e superlotar os veículos).
Na periferia paulistana, pesquisadores da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo), Campus Zona Leste, da Rede Mobilidade Periferias/Instituto das Cidades criaram o aplicativo para celulares Sufoco, que permite que as pessoas que estão usando o transporte público consigam dizer em tempo real o quanto os veículos estão superlotados. Segundo matéria da Folha de S. Paulo, desde 9 de novembro, dia em que foi disponibilizado para celulares Android na loja de aplicativos, mais de 200 pessoas baixaram o app, que recebeu cerca de 40 alertas de lotação. Em dados preliminares da pesquisa, 65% foram alertas de superlotação nos ônibus, 20% nos trens da CPTM e 15% no Metrô. Sobre a condição geral de lotação para todos os meios de transporte anteriores, 65% das pessoas indicaram que o transporte em questão estava "muito lotado" (passageiros em pé e com aglomeração), 30% responderam "lotado" (passageiros em pé e sem aglomeração) e 5% "lotação máxima" (não foi possível entrar).
Apesar de múltiplas pesquisas terem apontado, e ainda estarem apontando, a urgência de políticas públicas muito comprometidas e bem planejadas para a mobilidade urbana (com e sem pandemia), os governos patinam neste tema.
Uma articulação de prefeituras de grandes cidades e entidades de defesa do transporte coletivo junto ao Congresso conseguiu aprovar o PL 3364/2020, que destinaria 4 bilhões em recursos do Governo Federal para os municípios com mais de 200 mil habitantes salvarem seu transporte público do colapso. O projeto exigia contrapartidas de eficiência e de qualidade das empresas, algo que deveria se tornar padrão nas políticas. Mas, apesar de crucial, o PL foi vetado integralmente por Jair Bolsonaro, que alegou falta de recursos. Enquanto isso, o Ministério da Economia estuda propor uma desoneração fiscal sobre os preços dos combustíveis para aviação. As articulações em defesa do transporte público ainda tentam derrubar o veto ao PL 3364.
Mas este é só um aspecto. Mesmo aprovado, o PL não garante algo que as prefeituras já poderiam estar fazendo, que é um planejamento dos transportes baseado nas necessidades reais de deslocamento nas cidades (que são heterogêneas), levando em consideração a proteção da vida. E, a partir das lições aprendidas com a pandemia, é crucial redesenhar este modelo de gestão e financiamento do transporte coletivo que já se revelou caro, ineficiente e insustentável.
Sobre a autora
Raquel Rolnik é arquiteta e urbanista, é professora titular da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP. Foi diretora de planejamento da Secretaria Municipal de Planejamento de São Paulo(1989-92), Secretária Nacional de Programas Urbanos do Ministério das Cidades (2003-07) entre outras atividades ligadas ao setor público. De 2008 a 2014 foi relatora especial da ONU para o Direito à Moradia Adequada. Atuou como colunista de urbanismo da Rádio CBN-SP, Band News FM e Rádio Nacional, e do jornal Folha de S.Paulo, mantendo hoje coluna na Rádio USP e em sua página Raquel Rolnik. É autora, entre outros, de “A cidade e a lei: legislação, política urbana e territórios na cidade de São Paulo” (Studio Nobel, 1997), “Guerra dos lugares: a colonização da terra e da moradia na era das finanças (Boitempo, 2016) e “Territórios em Conflito - São Paulo: espaço, história e política” (Editora três estrelas, 2017).